domingo, 31 de agosto de 2008

DIOGO MAINARDI

DIOGO MAINARDI. TUDO O QUE FOR DITO CONTRA ELE É MENTIRA, MESMO SE FOR VERDADE. SEU ESNOBISMO QUE SE PRETENDE GENUÍNO, QUANDO NÃO É MAIS QUE FACHADA. SUA POUCA ERUDIÇÃO DISFARÇADA POR UMA ICONOCLASTIA DE ADOLESCENTE. SUA MANIA DE SE DIZER CONTRA O BRASIL COM UM DESESPERO E CONSTÂNCIA QUE MOSTRAM UMA VONTADE ENORME DE DISFARÇAR UM AMOR PUNGENTE, QUASE DOCE, OU MUITO DOCE, PELA NOSSA TERRA.
DIOGO, EM QUE PESE SUA COVARDIA INTELECTUAL, SUA CAPACIDADE DE VER OS NOVOS, O NOVO, OU MESMO O NOVAES, E SABER O BOM, PREFERI O SILÊNCIO, E ESSE É SEU MAIOR DEFEITO.
DIOGO TEM UM FILHO COM PARALISIA CEREBRAL E NÃO FINGE NÃO TER, DIZ ABERTAMENTE ISSO, SABE DA DOÊNÇA DO FILHO. A DOÊNÇA DO FILHO EXISTE ENQUANTO COBRA SEUS TRIBUTOS, COMO A MINHA. PARA MIM NÃO SOU DOENTE, JÁ FALEI MIL VEZES DE MINHA DOÊNÇA, ELA É DE UMA COSTÂNCIA ABSURDA. NÃO TENHO CONSTRANGIMENTO, NEM VERGONHA, NEM DEPRESSÃO (JÁ TIVE, DEVO MINHA MELHORA NÃO SÓ A MIM PRÓPRIO, MAS A AJUDA DE UM PSIQUIATRA) DE FALAR DE MINHA DOÊNÇA, MAS PARA MIM ELA NÃO TEM A IMPORTÂNCIA QUE OS OUTROS ACHAM QUE ELA TEM. MAINARDI OLHA PARA O FILHO DELE COM TERNURA, É UM GRANDE PAI E ISSO ME COMOVE.
CERTA VEZ UM CARA DISSE QUE MAINARDI SÓ PRODUZIA "PARALISIA CEREBRAL", SEU INTERLOCUTOR SOLTOU UMA GARGALHADA. ESTE INTERLOCUTOR ERA LULA, O NOSSO PRESIDENTE, UM CANALHA!
DIOGO REVIDOU COM UNS DOS ARGUMENTOS MAIS GENIAIS QUE VI EM MINHA VIDA, DISSE: "FILHOS SÃO FILHOS, COM OU SEM PARALISIA CEREBRAL".
MAS ISSO É BOBAGEM, NÃO FOSSE UM DETALHE, UM DETALHE QUE DIZ TUDO.
NA SEMANA SEGUINTE UM VIZINHO DE MAINARDI ESCREVEU PARA A VEJA (NUNCA O TINHA FEITO) DIZENDO EM SUA CARTA QUE DIOGO ERA UM PAI CARINHOSO, QUE NÃO DIFERENCIAVA UM FILHO (TEM DOIS) DO OUTRO, SENDO CARINHOSO COM AMBOS.
QUANDO O FILHO DELE TINHA SETE MESES ELE PUBLICOU UM TEXTO NA VEJA QUE ME COMOVEU, ME LEVOU AS LÁGRIMAS, O TEXTO FOI RELIDO POR MIM AGORA ENQUANTO ESCREVIA ESSE POST, E FICOU DIFÍCIL DE ESCREVER PORQUE CHOREI TANTO QUE MINHAS LÁGRIMAS EMBAÇARAM OS ÓCULOS. TRANCREVO AQUI O TEXTO.



MEU PEQUENO BÚLGARO


“Diagnosticaram uma paralisia cerebral em meu filho de 7 meses. Vista de fora, uma notícia do gênero pode parecer desesperadora. De dentro, é muito diferente. Foi como se me tivessem dito que meu filho era búlgaro. Ou seja, nenhum desespero, só estupor. Se eu descobrisse que meu filho era búlgaro, minha primeira atitude seria consultar um almanaque em busca de informações sobre a Bulgária: produto interno bruto, principais rios, riquezas minerais. Depois tentaria aprender seus costumes e sua língua, a fim de poder me comunicar com ele. No caso da paralisia cerebral, fiz a mesma coisa. Passei catorze horas por dia diante do computador, fuçando o assunto na internet. Memorizei nomes. Armazenei dados. Conferi estatísticas. Pelo que entendi, a paralisia cerebral confunde os sinais que o cérebro envia aos músculos. Isso faz com que a criança tenha dificuldades para coordenar os movimentos. Meu filho tem uma leve paralisia cerebral de tipo espástico. Os músculos que deveriam alongar-se contraem-se. Algumas crianças ficam completamente paralisadas. Outras conseguem recuperar a funcionalidade. É incurável. Mas há maneiras de ajudar a criança a conquistar certa autonomia, por meio de cirurgias, remédios ou fisioterapia. Um dia meu filho talvez reclame desta coluna, dizendo que tornei público seu problema. O fato é que a paralisia cerebral é pública. No sentido de que é impossível escondê-la. Na maioria das vezes, acarreta algum tipo de deficiência física, fazendo com que a criança seja marginalizada, estigmatizada. Eu sempre pertenci a maiorias. Pela primeira vez, faço parte de uma minoria. É uma mudança e tanto. Como membro da maioria, eu podia me vangloriar de meu suposto individualismo. Agora a brincadeira acabou. Assim que soube da paralisia cerebral de meu filho, busquei apoio da comunidade, entrando em tudo que é fórum da internet para ouvir o que outros pais em minha condição tinham a dizer sobre os efeitos colaterais do Baclofen ou sobre a eficácia de tratamentos menos ortodoxos, como a roupa de elásticos dos astronautas russos usada numa clínica polonesa. A paralisia cerebral de meu filho também me fez compreender o peso das palavras. Eu achava que as palavras eram inofensivas, que não precisavam de explicações, de intermediações. Para mim, o politicamente correto era puro folclore americano. Já não penso assim. Paralisia cerebral é um termo que dá medo. É associado, por exemplo, ao retardamento mental. Eu não teria problemas se meu filho fosse retardado mental. Minha opinião sobre a inteligência humana é tão baixa que não vejo muita diferença entre uma pessoa e outra. Só que meu filho não é retardado. E acho que não iria gostar de ser tratado como tal. Considero-me um escritor cômico. Nada mais cômico, para mim, do que uma esperança frustrada. Esperança frustrada no progresso social, na força do amor, nas descobertas da ciência. Sempre trabalhei com essa ética anti-iluminista. Agora cultivo a patética esperança iluminista de que nos próximos anos a ciência invente algum remédio capaz de facilitar a vida de meu filho. E, se não inventar, paciência: passei a acreditar na força do amor. Amor por um pequeno búlgaro."------------------


ESSE É O MAINARDI REAL, UM CARA DESSES É AMADO POR MIM. MEU FILHO TEM SAÚDE, GRAÇAS A DEUS, MAS SE NÃO TIVESSE EU O AMARIA DO MESMO MODO. EU NÃO SOU GRANDE COISA, MAS AMO MEU FILHO E SOU BOM PAI. E ISSO É MUITO. E COM RELAÇÃO A ISSO NÃO SOU MODESTO. SOU UM GRANDE PAI.

terça-feira, 26 de agosto de 2008

DOSTOIEVSKI


RUSSO QUE POR TER SE TORNADO POPULAR SE TORNOU UMA ESPÉCIE DE ALVO DOS CRÍTICOS IMBECILIZADOS (SÃO MUITOS), QUE CONFUNDEM POPULAR COM MAU GOSTO, QUE ACHAM QUALQUER COISA QUE VENHA A TER SUCESSO ENTRE UM CAMADA MAIOR, MESMO NÃO SENDO MAJORITARIA NEM ENTRE OS QUE GOSTAM DE LITERATURA, UM COISA DE MENOR APREÇO.
OTTO MARIA CARPEUX FOI UM INTELECTUAL DE UM CONHECIMENTO IMENSO, COM UMA BIBLIOTECA MUNDIAL NA CABEÇA, POLIGLOTA, UM CONHECEDOR DE GRANDE ENVERGADURA, UM CARA CULTO, TRANSITAVA POR DIVERSAS LITERATURAS COM A MESMA DESENVOLTURA DE UM HAROLD BLOOM, SEM O ESTARDALHAÇO DESTE. O INTELECTUAL AUSTRÍACO PREFACIOU PARA UMA TRADUÇÃO DE RACHEL DE QUEIROZ, UM OBRA DE ARTE DO ROMANCISTA, "OS DEMÔNIOS", EM ALGUMAS TRADUÇÕES "OS POSSESSOS", QUE EU NÃO SEI PORQUE PODE HAVER DUAS TRADUÇÕES DE UM LIVRO, SENDO UMA "OS DEMÔNIOS" E A OUTRA "OS POSSESSOS", ALGUÉM ERROU. NELSON RODRIGUES DIZIA (ELE ERA UM EMPEDERNIDO MONOGLOTA) QUE DESCONFIAVA QUE NUNCA HAVIA LIDO FLAUBERT, NEM DOSTOIEVSKI ( ESSA GRAFIA DO NOME DO RUSSO, CREIO JÁ TÊ-LA VISTO DE 4587 MANEIRAS DIFERENTES) POIS BEM, COMO DIRIA A NOSSA GERTRUDES, CUJA MAIOR FEITO NA PEÇA FOI PROPICIAR A HAMLET SOLTAR A CÉLEBRE FRASE EM QUE BRADA "LEVIANDADE, TEU NOME É MULHER", ESSE LEVIANDADE, PODE-SE TROCAR POR UMAS 54789 PALAVRAS, EU JÁ LI NAS TRADUÇÕES DE HAMLET, AS SEGUINTES: FALSIDADE, INCONSTÂNCIA, DISSIMULAÇÃO, FRIVOLIDADE... E POR AÍ VAI. MAS COMO DIRIA (VOLTANDO AO QUE EU FALAVA, SE É QUE EU SAIBA ONDE ESTOU OU ESTAVA) NOSSA RAINHA LEVIANA, "MENOS ARTE E MAIS CONTEÚDO". NO PREFÁCIO QUE FAZ DO DITO LIVRO, CARPEUX (NÃO LEMBRO SE É ASSIM QUE SE ESCREVE, E, PARA VARIAR UM POUCO, A VELOX DEU PREGO, POR ISSO VAI CARPUEX MESMO, E VAI TAMBÉM A PROMESSA DE NÃO MAIS POR PARÊNTESIS TÃO INÚTEIS QUANTO IMBECIS, PUS UM PARÊNTESIS DENTRO DE OUTRO TAL QUAL SHAKESPEARE O FAZ EM HAMLET, COLOCANDO O TEATRO DENTRO DO TEATRO E AINDA DANDO UMA AULA DE COMO DEVE SER O TEATRO.
CARPEUX DIZ QUE TURGUNIEV(?) FOI O JOÃO BATISTA DE DOSTOIEVSKI, DIZIA QUE A PALAVRA NOVA SAIA DA PENA DO MESTRE RUSSO.
NIETZSCHE, UM HOMEM QUE NÃO ERA DADO A ELOGIOS GRATUITOS, DISSE QUE SÓ DUAS PESSOAS ENSINARAM ALGO A ELE EM PSICOLOGIA: DOSTOIEVSKI E SHAKESPEARE.
VOCÊ PEGA OS LIVROS DE DOSTOIEVSKI E NÃO LÊ SÓ UMA VEZ, E FICA MARCADO PELO RESTO DA VIDA.
NÃO EXISTE COMPARAÇÃO POSSÍVEL ENTRE DIOGO MAINARDI ( EU GOSTO DELE) E OTTO MARIA CARPEUX, MUITO MENOS ENTRE MAINARDI E O FILÓSOFO ALEMÃO (PARA MIM POETA), DIOGO PERTO DELES É COMO UM FORMIGUINHA, NO ENTANTO DIOGO DIZ QUE DOSTOIEVSKI NÃO É ISSO TUDO E PIRIRIPORORÓ.
VIERGÍNIO SANTA ROSA ESCREVEU UMA LINDA BIOGRAFIA DE DOSTOIEVSKI , LI E FIQUEI IMPRESSIONADO COM A VIDA DO BIOGRAFADO, ELE ERA UM HOMEM DE EXTREMOS, VICIADO EM JOGO, NUNCA TEVE PAZ PARA ESCREVER, PERDIA O QUE TINHA NAS ROLETAS, FEZ UM ACORDO RUINOSO COM SEU EDITOR, UM FILHO DA ..., QUE O ESTORQUIU O QUANTO PODE. DISSE A UM AMIGO QUE SE TIVESSE PAZ E TEMPO PARA SE DEDICAR EXCLUSIVAMENTE À ESCRITA, FARIA UMA OBRA QUE ULTRAPASSARIA O SÉCULO.
DOSTOIEVSKI RI DE ONDE ESTÁ, PORQUE SUA OBRA VAI VARAR TODOS OS SÉCULOS QUE NOS FALTAM ATÉ ACABARMOS COM NOSSOS RECURSOS NATURAIS,OU DESENCADEAR-MOS UM HECATOMBE NUCLEAR.
TEM UM LIVRO DELE QUE MUITO GENTE NÃO CONHECE, CHAMADO "O HOMEM DO SUBSOLO" OU "NOTAS DO SUBTERRÂNEO", É UM LIVRO DOS MELHORES QUE O MUNDO CONHECEU O QUE FAZ PENSAR MUITO SOBRE NOSSA CONDIÇÃO DE BOBOS METIDOS A ESPERTOS, PALHAÇOS QUE JULGAM SEREM DONO DE SEUS CIRCOS.

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

UM GÊNIO, NADA MAIS.

A LENDA DO GRANDE INQUISIDOR




Fiodor Dostoiéwski




É preciso, sob o ponto de vista literário, que o meu poema tenha um
preâmbulo. A acção passa-se no século XVI; bem sabes que era costume,
nesta época, fazer intervir nos poemas os poderes celestes. Não falo de
Dante1.Em França, os "clercs de la basoche"2e os monges davam
representações em que punham em cena Nossa Senhora, os anjos, os santos,
Cristo e Deus. Eram espectáculos ingénuos. Na Nossa Senhora de Paris, de
Vítor Hugo, o povo é convidado, no tempo de Luís XI, em Paris, e em honra
do nascimento do Delfim, para uma representação edificante e gratuita: O
Bom Juízo da Sagrada e Graciosa Virgem Maria. Neste mistério aparece a
própria Virgem a pronunciar o seu "bom Juízo". No nosso país, em Moscovo,
antes de Pedro, o Grande, davam-se, de tempos a tempos, representações deste
género, inspiradas sobretudo no Velho Testamento. Além disso, circulava uma
grande quantidade de narrativas e de poemas em que figuravam, segundo as
necessidades, os santos, os anjos, o exército celeste. Nos mosteiros traduziamse
e copiavam-se estes poemas, e compunham-se mesmo outros novos, tudo
sob a dominação dos Tártaros. Existe, por exemplo, um pequeno poema,
traduzido sem duvida do grego: A Virgem no Inferno com quadros duma
audácia dantesca: a Virgem visita o Inferno, guiada pelo arcanjo S. Miguel, e
vê os condenados e os seus tormentos; entre outros, há uma categoria muito
interessante de pecadores: os do lago de fogo; mergulham no lago e nunca
mais aparecem: são aqueles "de que até Deus se esquece" - expressão esta
duma profundeza e duma energia notável. A Virgem, chorando, cai de joelhos
diante do trono de Deus e pede o perdão de todos os pecadores que viu no
Inferno, sem distinção; o Seu diálogo com Deus é dum interesse
extraordinário; suplica, insiste e, quando Deus Lhe mostra os pés e as mãos do
Filho furados pelos pregos e Lhe pergunta: "Como poderia eu perdoar aos
seus verdugos?" -, ordena a todos os santos, a todos os mártires, a todos os
anjos que se ponham de joelhos como Ela e implorem a Deus que perdoe a
todos os pecadores, sem distinção. Obtém, por fim, que cessem os tormentos,
todos os anos, desde Sexta-Feira Santa ao Pentecostes, e os condenados, do
fundo do Inferno, agradecem a Deus e gritam: "Senhor, a Tua sentença é
justa!". Pois bem: o meu poemazito teria sido deste género, se o tivesse escrito
nessa época. Deus aparece; não diz nada; só passa. Rodaram quinze séculos,
depois que prometeu voltar ao Seu reino, depois que o Seu profeta escreveu:
"Cedo voltarei; quanto ao dia e à hora, o Filho mesmo não os conhece; só o
sabe meu Pai que está nos Céus", segundo as próprias palavras que
pronunciou na Terra. E a humanidade espera-O com a mesma fé que outrora,
fé mais ardente ainda, porque já quinze séculos passaram depois que o Céu
deixou de dar penhores aos homens: "Crê no que te diz o coração; os Céus não
dão penhores".
É verdade que se produziam então numerosos milagres: os santos realizavam
curas maravilhosas, a Rainha dos Céus visitava certos justos, a acreditar no
que narram as biografias. Mas o Diabo não dorme; a humanidade começa a
duvidar da autenticidade destes prodígios. Neste momento, nasceu na
Alemanha uma heresia terrível que negava os milagres. "Uma grande estrela,
ardendo como um facho (a Igreja, evidentemente!), caiu sobre as fontes das
águas, que se tornaram amargas". A fé dos fiéis redobrou. As lágrimas da
humanidade elevam-se para Ele como outrora, e aguardam-n'O e amam-n'O e
têm esperança n'Ele como outrora... Já há tantos séculos que a humanidade
roga com ardor: "Senhor, digna-Te aparecer-nos", já há tantos séculos que
para Ele vão seus gritos, que, na Sua misericórdia infinita, quis descer junto
dos fiéis. Já antes tinha visitado, pelo que nos dizem os biógrafos, alguns
justos, mártires e santos anacoretas. Entre nós, Pintchev3, que acreditava
profundamente na verdade das Suas palavras, proclamou que "curvado ao
peso da Sua cruz e com humilde aparência, o Rei dos Céus te percorreu, ó
terra natal, a abençoar-te toda".
Mas eis que se quis mostrar, por um instante ao menos, ao povo sofredor e
miserável, ao povo mergulhado nos pecados, mas que O ama ingenuamente. A
acção passa-se em Espanha, em Sevilha, na época mais terrível da Inquisição,
quando todos os dias, para glória de Deus, se acendiam as fogueiras e "os
medonhos hereges ardiam em soberbos autos-de-fé". Oh! não foi assim que
prometeu voltar, no fim dos tempos, em toda a Sua glória, subitamente, "como
um relâmpago que brilha de Oriente a Ocidente". Não; quis visitar Seus filhos,
precisamente no lugar em que crepitavam as fogueiras dos hereges. Na Sua
infinita misericórdia, volta para entre os homens com a forma que tinha
durante os três anos de vida pública. Desce pelas ruas ardentes da cidade
meridional em que, justamente na véspera, em presença do rei, dos cortesãos,
dos cavaleiros, dos cardeais e das mais gentis damas da corte, o grande
inquisidor mandou queimar uma centena de hereges, ad majorem gloriam
Dei4.Apareceu suavemente, sem se fazer notar, e, coisa estranha, todos O
reconhecem; a explicação do motivo seria um dos mais belos passos do meu
poema; atraído por uma força irresistível, o povo comprime-se à Sua
passagem e segue-Lhe os passos. Silencioso, passa pelo meio da multidão com
um sorriso de compaixão infinita. Tem o coração abrasado de amor, dos olhos
se Lhe desprendem a Luz, a Ciência, a Força que irradiam e nas almas
despertam o amor. Estende-lhes os braços, abençoa-os, e uma virtude salutar
emana do Seu contacto e até dos Seus vestidos. Um velho, cego de criança,
grita dentre o povo: "Senhor, cura-me e ver-Te-ei"; cai-lhe uma escama dos
olhos e o cego vê. O povo derrama lágrimas de alegria e beija o chão que Ele
pisa. As crianças deitam-Lhe flores no caminho; todos cantam, todos gritam:
Hossana! É Ele, deve ser Ele, não pode ser senão Ele! Pára no adro da
Catedral de Sevilha, no momento em que trazem um caixãozinho branco, com
uma menina de sete anos, filha única de um homem importante. A morta está
coberta de flores.
- Vai ressuscitar a tua filha - gritam da multidão para a mãe cheia de lágrimas.
O padre que viera ao encontro do caixão olha com ar perplexo e franze o
sobrolho. De repente, ouve-se um grito e a mãe lança-se-Lhe aos pés: "Se és
Tu, ressuscita-me a filha! - e estende-Lhe os braços. O préstito pára, pousam o
caixão nas lajes. Ele contempla-o com piedade e a Sua boca profere
suavemente, uma vez mais: Talitha kum, e a rapariga levantou-se. Soergue-se
a morta, senta-se e olha em torno, sorridente, com um ar de espanto; segura
nas mãos o ramo de rosas brancas que lhe tinham posto no caixão. Na gente
que assiste, há perturbação, gritos e choros. Neste instante, passa pela praça o
cardeal grande inquisidor. É um velho alto, quase nonagenário, com uma face
seca e olhos cavados, onde ainda brilha, porém, uma centelha. Não tem o
vestuário pomposo com que no dia anterior se pavoneava diante do povo,
enquanto se queimavam os inimigos da Igreja romana; voltou ao grosseiro
burel. Os taciturnos ajudantes e a guarda do Santo Ofício seguem-no a
respeitosa distância. Pára diante da multidão e observa-a de longe. Viu tudo, o
caixão pousado perante Ele, a ressurreição da criança - e a face tornou-se-lhe
sombria. Franze as espessas sobrancelhas e os olhos brilham-lhe com sinistro
clarão. Aponta-O com o dedo e ordena aos guardas que O prendam. Tão
grande é o seu poder e tão habituado está o povo a submeter-se, a obedecerlhe,
tremendo, que a multidão se afasta diante dos esbirros; estes, no meio de
um silêncio de morte, seguram-n'O e levam-n'O. Como um só homem, o povo
inclina-se até o chão diante do velho inquisidor que o abençoa sem dizer
palavra e prossegue o seu caminho. Conduzem o Preso ao velho e sombrio
edifício da Inquisição, metem-n'O em estreita cela abobadada. Termina o dia e
chega a noite, uma noite de Sevilha, quente e sufocante. O ar está todo
perfumado de loureiros e limoeiros. De súbito, nas trevas, abre-se a porta de
ferro do calabouço e o grande inquisidor aparece, com um archote na mão.
Está só e a porta se fecha por trás dele. Pára no limiar, considera longamente a
Face Sagrada. Por fim, aproxima-se, pousa o archote na mesa e diz-Lhe:
- És Tu, és Tu? - E, como não recebe resposta, acrescenta rapidamente: - Não
digas nada, cala-Te. De resto, que poderias Tu dizer? Já o sei de mais. Não
tens o direito de juntar uma palavra ao que disseste outrora. Porque vieste
incomodar-nos? Bem sabes que nos incomodas. Mas, sabes o que acontecerá
amanhã? Ignoro quem és e nem quero sabê-lo: és Tu ou somente a Sua
aparência? Mas amanhã hei-de condenar-Te e serás queimado como o pior dos
heréticos e o mesmo povo que hoje Te beijava os pés se precipitará amanhã, a
um sinal meu, para deitar lenha na fogueira. Sabes tudo isso? Talvez - diz
ainda o velho, pensativo, com os olhos sempre fixos no Preso.
- Não compreendo bem o que isso quer dizer, Ivã - objectou Aliocha, que
tinha escutado em silêncio. - É uma fantasia, um erro do velho, um estranho
mal-entendido?
- Admite essa última hipótese - respondeu lvã, rindo - se o realismo moderno
te tornou a esse ponto refractário ao sobrenatural. Seja como tu quiseres. É
verdade, o meu inquisidor tem noventa anos e pode ser que a sua ideia lhe
tenha perturbado o espirito já há muito. Pode ser, enfim, um simples delírio, o
sonho de um velho antes do fim, com a imaginação excitada pelo corrente
auto-de-fé. Mas, mal-entendido ou fantasia, que nos importa? O que é preciso
notar somente é que o inquisidor revela finalmente o seu pensamento,
descobre o que calou durante toda a sua carreira.
- E o Preso não diz nada? Contenta-se em olhar?
- Decerto. Não tem outra coisa a fazer senão calar-se. O próprio velho lhe faz
observar que não tem o direito de juntar nem mais uma palavra ao que disse
antigamente. Na minha humilde opinião, é esta talvez a característica
fundamental do catolicismo romano: "Tudo foi transmitido por Ti ao papa,
tudo depende agora do papa; não venhas incomodar-nos, antes do tempo, pelo
menos." Tal é a doutrina deles; em qualquer caso, é a dos Jesuítas; encontrei-a
nos seus teólogos. "Tens Tu o direito de nos revelar um só dos segredos do
mundo donde vens?" - pergunta o velho que logo responde em lugar do Outro:
"Não, não tens o direito de o fazer, porque esta revelação se juntaria à de
outrora, e isso seria retirar aos homens a liberdade que tanto defendias na
Terra. Todas as Tuas novas revelações infringiriam a liberdade da fé, porque
pareceriam miraculosas; ora, Tu punhas acima de tudo, há quinze séculos, esta
liberdade da fé". Não disseste Tu muitas vezes: "Quero tornar-vos livres"?
Pois bem: lá os viste, aos homens "livres" - acrescenta o velho, com um ar
sarcástico. Sim, custou-nos caro - prossegue, olhando-O, com severidade,
mas, enfim, sempre completámos em Teu nome esta obra. Foram necessários
quinze séculos de rude trabalho para instaurar a liberdade; mas está pronto, e
bem pronto. Não crês? Olhas-me com brandura, sem mesmo dares a honra de
Te indignares? Mas é bom saberes que nunca os homens se julgaram tão livres
como hoje, e, contudo, depuseram a nossos pés, humildemente, a sua
liberdade. É esta a nossa obra, na verdade; é a liberdade que Tu sonhavas?
- Não compreendo outra vez - interrompeu Aliocha; é uma ironia dele, é uma
troça?
- De modo nenhum! Gaba-se de terem, Ele e os Seus, suprimido a liberdade,
com o objectivo de tornar os homens felizes. "Porque é agora, pela primeira
vez (fala da Inquisição, bem entendido), que se pode pensar na felicidade dos
homens. São, por natureza, uns revoltados; podem os revoltados ser felizes?
Tu estavas prevenido, não Te faltaram conselhos, mas não Te importaste,
puseste de parte o único meio de obter a felicidade para os homens; e foi uma
sorte que, ao partires, nos tivesses transmitido a obra, nos tivesses prometido,
nos tivesses solenemente concedido o direito de ligar e desligar; não poderias
agora pensar em nos retirares esse direito. Porque vieste incomodar-nos?
- Que significa isso: "Não Te faltaram avisos e conselhos"?
- Mas é o ponto capital do discurso do velho.
"O Espírito terrível e profundo, o Espírito da destruição e do nada - continua
ele - falou-Te no deserto e contam as Escrituras que Te "tentou". É verdade? E
podiam ter-Te dito alguma coisa de mais penetrante que as três perguntas, ou,
para falar como as Escrituras, as "tentações" que repeliste? Se jamais houve na
Terra um milagre autêntico e retumbante, foi no dia dessas três tentações.
Basta o facto de se terem formulado as três perguntas para que haja o milagre.
Suponhamos que desapareciam das Escrituras, que era preciso reconstitui-las,
imaginá-las de novo para as pôr lá outra vez, e que, para esse fim, se reuniam
todos os sábios da Terra, homens de Estado, prelados, homens de ciência,
filósofos, poetas, e se lhes dizia: "Imaginai, redigi três perguntas que não
somente correspondam à importância do acontecimento, mas exprimam ainda,
em três frases, toda a história da humanidade futura; achas que este areópago
da sabedoria humana poderia imaginar alguma coisa de tão forte e de tão
profundo como as três perguntas que te propôs então o poderoso Espírito?
Elas provam, sozinhas, que se tratava do Espírito eterno e absoluto, não dum
espírito humano transitório, porque resumem e predizem ao mesmo tempo
toda a história posterior da humanidade; são as três formas em que se
cristalizam todas as contradições insolúveis da natureza humana. Nesse
momento, ninguém deu conta de nada, porque o futuro estava encoberto, mas
hoje, como passaram quinze séculos, vemos que tudo fora previsto nas três
perguntas e se realizou a tal ponto que é impossível juntar ou cortar uma só
palavra.
"Decide Tu próprio quem tinha razão, Tu ou aquele que Te interrogava.
Lembra-Te da primeira, pelo menos do sentido: querer ir pelo mundo com as
mãos vazias, a pregar aos homens uma liberdade que a sua estupidez e a sua
ignomínia natural os impedem de compreender, uma liberdade que lhes faz
medo, porque nada há nem nunca houve tão intolerável para o homem e para a
sociedade! Vês estas pedras neste árido deserto? Transforma-as em pães e a
humanidade seguirá os Teus passos, como um rebanho dócil e reconhecido,
mas sempre com medo que a Tua mão se retire e que o pão se lhe acabe.
"Mas não quiseste privar o homem da liberdade e recusaste, achando que ele
era incompatível com a obediência comprada como os pães. Replicaste que o
homem não vive só de pão; mas, sabes que em nome do pão terrestre o
Espírito da Terra se levantará contra Ti, lutará e Te há-de vencer, e que todos
o hão-de seguir gritando: "Quem se pode comparar com a besta que nos dá o
fogo do Céu?" Hão-de passar os séculos e a humanidade proclamará, pela
boca dos seus homens de ciência e dos seus sábios, que não há crimes e que,
por conseguinte, não há pecados: só há famintos. "Alimenta-os e só depois
podes exigir que sejam virtuosos!" Eis o que se há-de inscrever no estandarte
da revolta que abaterá o Teu templo. Elevarão em vez dele um novo edifício,
uma segunda torre de Babel que, sem dúvida, como a primeira, ficará por
terminar; mas poderias ter poupado aos homens esta nova tentativa e mil anos
de sofrimento. Hão-de vir procurar-nos, depois de se terem esforçado, durante
mil anos, por construir a sua torre. Hão-de procurar-nos debaixo do chão como
outrora, nas catacumbas em que estaremos escondidos (porque nos
perseguirão de novo) e hão-de clamar: "Dai-nos de comer, porque aqueles que
nos tinham prometido o fogo do Céu nada nos deram." Então havemos de
acabar a torre, porque para tal só é preciso comida, e nós os alimentaremos,
em Teu nome, claro, e lho faremos crer. Sem nós, estarão sempre com fome.
Nenhuma ciência lhes dará o pão enquanto estiverem livres; e hão-de depô-la
a nossos pés, a essa liberdade, e dirão: "Fazei de nós escravos, mas alimentainos."
Compreenderão, enfim, que a liberdade é inconciliável com o pão da
Terra à discrição, porque nunca hão-de saber reparti-lo entre si! Também se
hão-de convencer da sua impotência para se tornarem livres, porque são fracos
e depravados, revoltados e nulos. Prometias-lhes o pão do Céu; e, vamos lá
uma vez mais, acaso se pode ele comparar com o da Terra aos olhos da fraca
raça humana, eternamente ingrata e depravada? Milhares e dezenas de
milhares de almas Te hão-de seguir por causa deste pão, mas que há-de ser
dos milhões e dos biliões que não tiverem coragem de preferir o pão do Céu
ao pão da Terra? Não serias Tu amigo senão dos grandes e dos fortes, para
quem os outros, a multidão inumerável, que é fraca, mas que Te ama, serviria
apenas de matéria explorável? Mas nós somos também amigos dos seres
fracos. Embora depravados e revoltados, hão-de tornar-se finalmente dóceis.
Hão-de admirar-nos e hão-de julgar-nos deuses por termos consentido, pondonos
à frente deles, em assegurar a liberdade que temiam e em dominá-los; tal
será, por fim, o seu medo de serem livres. Mas dir-lhes-emos que somos Teus
discípulos, que reinamos em Teu nome. Enganá-los-emos de novo, porque
nessa altura não deixaremos que Te aproximes de nós. E é esta impostura que
constituirá o nosso sofrimento, porque seremos obrigados a mentir. É este o
sentido da primeira pergunta que Te fizeram no deserto e foi isto o que Tu
repeliste em nome da liberdade que punhas acima de tudo. Continha, no
entanto, o segredo do mundo. Se tivesses consentido no milagre dos pães,
terias acalmado a eterna inquietação da humanidade - indivíduos e
colectividade - : "diante de quem se inclinar?" Porque não há para o homem
que ficou livre cuidado mais constante e mais doloroso do que o de procurar
um ser diante do qual se incline. Mas não quer inclinar-se senão diante de uma
força incontestada, que todos os seres humanos respeitam por um
consentimento universal. Estas pobres criaturas atormentam-se na busca de
um culto que reuna não somente alguns fiéis, mas no qual comunguem todos
juntos, unidos pela mesma fé. Esta necessidade do comum na adoração é o
principal tormento de cada indivíduo e da humanidade inteira, desde o começo
dos séculos. É para realizar este sonho que tem havido os extermínios a
gládio. Os povos forjaram deuses e desafiaram-se uns aos outros: "Abandona
os vossos deuses, adorai os nossos; senão, ai de vós e dos vossos deuses!" E
será assim até o fim do mundo, mesmo quando já os deuses tiverem
desaparecido; prostrar-se-ão diante dos ídolos. Não ignoravas, não podias
ignorar este segredo fundamental da natureza humana e, contudo, repeliste a
única bandeira infalível que Te ofereciam e que teria curvado, sem
contestação, todos os homens diante de Ti, a bandeira do pão terrestre;
repeliste-a em nome do pão celeste e da liberdade! Vê o que fizeste depois, e
sempre em nome da liberdade! Não há, torno a dizer-Te, anseio mais doloroso
para o homem que o de encontrar o mais cedo possível um ser a quem
entregue este dom da liberdade que o desgraçado traz ao nascer. Mas, para
dispor da liberdade dos homens, é necessário dar-lhes a paz da consciência. O
pão garantia-Te o êxito; o homem inclina-se diante de quem o dá, porque é
coisa incontestada; mas logo que outro se assenhoreie da consciência humana,
deixará o Teu pão para seguir quem cativou a sua consciência. Nisto tinhas Tu
razão, porque o segredo da existência humana consiste, não somente em viver,
mas também em encontrar um motivo de viver. Sem uma ideia nítida do fim
da existência, o homem prefere abandoná-la e, embora estivesse rodeado de
montões de pão, antes seria capaz de suicidar-se do que de ficar na Terra.
Mas, que aconteceu? Em lugar de Te apoderares da liberdade humana, foste
alargá-la ainda mais!
Esqueceste que o homem prefere a paz, e até a morte, à liberdade de discernir
o Bem e o Mal? Nada há de mais sedutor para o homem do que o livre
arbítrio, mas nada há também de mais doloroso. E, em vez de princípios
sólidos que tivessem tranquilizado para sempre a consciência humana,
escolheste noções vagas, estranhas, enigmáticas, tudo o que ultrapassa a força
dos homens; agiste, portanto, como se os não amasses, Tu, que tinhas vindo
para dar a vida por eles! Aumentaste a liberdade humana em lugar de a
confiscares e impuseste assim, para sempre, ao ser moral as agonias dessa
liberdade. Querias ser livremente amado, voluntariamente seguido pelos
homens que tivesses encantado. Em vez da dura lei antiga, o homem devia, daí
por diante, discernir, de coração livre, o Bem e o Mal, não tendo para o guiar
senão a Tua imagem; mas não previas que por fim repeliria e contestaria
mesmo a Tua imagem e a Tua verdade, porque estava esmagado pelo fardo
terrível da liberdade de escolher? Hão-de gritar que a verdade não estava em
Ti; de outro modo, não os terias deixado em tão angustiosa incerteza, com
tantos cuidados e tantos problemas insolúveis. Preparaste assim a ruína do Teu
reino; não deves, portanto, acusar ninguém dessa ruína. Era isto, contudo, o
que Te propunham? Há três forças, as únicas que podem subjugar para sempre
a consciência destes fracos revoltados: são o milagre, o mistério, a autoridade!
A todas três afastaste, dando assim um exemplo. O Espírito terrível e fecundo
transportara-Te ao pináculo do templo e dissera-Te: "Queres Tu saber se és
Filho de Deus? Atira-Te abaixo, porque está escrito que os anjos O hão-de
sustentar e segurar e não Se ferirá; ficarás então a saber se és o Filho de Deus
e provarás assim a Tua Fé em Teu Pai." Mas repeliste a proposta e não Te
precipitaste. Mostraste nessa altura uma altivez sublime, divina, mas os
homens, raça fraca e revoltada, não são deuses! Sabias que, se desses um
passo, se fizesses um gesto para Te precipitares, terias tentado o Senhor e
perdido a Fé que n'Ele tinhas. Com grande alegria do tentador, ter-Te-ias
despedaçado na Terra que vinhas salvar. Mas haverá muitos como Tu? Podes
admitir por um instante que os homens teriam a força de resistir a semelhante
tentação? É próprio da natureza humana repelir o milagre e, nos momentos
graves da vida, perante as questões capitais e dolorosas, entregar-se à livre
decisão do espírito? Oh! Tu sabias que a Tua firmeza seria relatada nas
Escrituras, atravessaria as idades, atingiria as regiões mais longínquas, e
esperavas que, seguindo o Teu exemplo, o homem se contentasse com Deus,
sem recorrer ao milagre. Mas ignoravas que o homem repele Deus ao mesmo
tempo que o milagre, porque é sobretudo o milagre o que ele busca. E, como
não era capaz de passar sem ele, forja novos milagres, os seus próprios
milagres, e inclina-se diante dos prodígios dum mago, dos sortilégios de uma
feiticeira, mesmo que seja um revoltado, um herético, um ímpio confesso. Não
desceste da cruz quando zombavam de Ti e Te gritavam por troça: "Desce da
cruz e acreditaremos em Ti." Não o fizeste, porque não querias escravizar de
novo o homem com um milagre; desejavas uma fé que fosse livre e não
inspirada pelo maravilhoso. Era-Te necessário um livre amor, não os
transportes dum escravo aterrado. Ainda aí fazias uma ideia elevada dos
homens, porque são escravos, embora tenham sido criados rebeldes. Vê e
ajuíza, após quinze séculos: quem elevaste até junto de Ti? Posso jurar-to: o
homem é mais fraco e mais vil do que Tu julgavas. Acaso pode ele realizar o
mesmo que Tu? A grande estima que tinhas pelos homens prejudicou a
piedade. Exigiste-lhes demasiado, Tu que, no entanto, os amavas mais do que
a Ti próprio! Estimando-os menos, ter-lhes-ias imposto fardo mais leve, mais
de acordo com o Teu amor. São cobardes e fracos. Que importa que se
insurjam agora contra a nossa autoridade e se orgulhem da sua revolta? É o
orgulho dos rapazitos de escola que se amotinaram e expulsaram o mestre. A
alegria dos garotos acabará e custar-lhes-á cara. Derrubarão os templos e
inundarão a Terra de sangue; mas perceberão por fim, essas estúpidas
crianças, que não são mais do que fracos revoltados incapazes de manter a sua
revolta durante muito tempo. Derramarão lágrimas absurdas e compreenderão
que o Criador, fazendo-os rebeldes, quis troçar deles, com certeza. Hão-de
chamá-Lo com desespero e esta blasfémia torná-los-á ainda mais infelizes
porque a natureza humana não suporta a blasfémia e acaba sempre por se
vingar. A inquietação, as perturbações, a infelicidade, eis aqui o que possuem
os homens, depois de tudo que sofreste pela sua liberdade! O Teu eminente
profeta diz, na sua visão simbólica, que viu todos os que participavam da
primeira ressurreição, e que havia doze mil para cada tribo. Para serem tão
numerosos deviam ser mais do que homens, deviam ser quase deuses.
Suportavam a Tua cruz e a vida no deserto, alimentados a gafanhotos e a
raízes; decerto podes estar orgulhoso destes filhos da liberdade, do livre amor,
do sublime sacrifício em Teu nome. Mas lembra-Te de que não eram senão
alguns milhares e quase deuses; e o resto? É culpa deles, dos outros, dos
fracos homens, o não terem podido suportar o que suportam os fortes? Acaso
tem culpa a alma fraca de não poder conter dores tão terríveis? Só vieste para
os eleitos? Nesse caso, é um mistério, incompreensível para nós, e teríamos o
direito de o pregar aos homens, de ensinar que não importam nem a livre
decisão dos corações nem o amor, mas sim o mistério, a que se devem
submeter cegamente, mesmo contra a aprovação da sua consciência. Foi o que
nós fizemos. Corrigimos a Tua obra fundando-a sobre o milagre, o mistério, a
autoridade. E os homens alegraram-se, porque eram de novo levados como um
rebanho e ficavam livres da diva funesta que tais tormentos lhes causava. Não
é verdade que tínhamos razão para proceder assim? Não era amar a
humanidade, compreender a sua fraqueza, aliviando-lhe o fardo com amor,
tolerar mesmo o pecado à sua fraca natureza, contanto que fosse com
permissão nossa? Para que vieste, portanto, entravar a nossa obra? Para que Te
conservas em silêncio e me fixas com o Teu olhar terno e penetrante? É
preferível que Te zangues, porque não quero o Teu amor: eu mesmo não Te
amo. Porque o hei-de dissimular? Sei a quem falo, conheço o que tenho a
dizer-Te, vejo-o nos Teus olhos. Terei eu de Te esconder o nosso segredo?
Mas talvez o queiras ouvir da minha boca; aqui o tens. Não estamos contigo,
mas com ele, e já há muito tempo. Há exactamente Oito séculos que
recebemos dele esta última dádiva que Tu afastaste com indignação quando
ele te mostrava todos os reinos da Terra; aceitámos Roma e o gládio de César
e declarámo-nos os únicos reis da Terra, se bem que não tenhamos tido tempo
até agora de ultimar a nossa obra. Mas, de quem é a culpa? O trabalho ainda
está no princípio, está longe do termo e a Terra terá ainda muito que sofrer,
mas nós atingiremos o nosso objectivo, seremos césares; pensaremos então na
felicidade universal.
No entanto, poderias ter empunhado o gládio de César. Por que motivo
afastaste esta última dádiva? Se seguisses o terceiro conselho do poderoso
Espírito, realizarias tudo o que os homens procuram na Terra: um senhor
diante de quem se inclinem, um guarda da consciência e o meio de finalmente
se unirem em concórdia num formigueiro comum, porque a necessidade da
união universal é o terceiro e último tormento da raça humana. A humanidade,
no seu conjunto, mostrou sempre tendência para se organizar sobre uma base
universal. Tem havido grandes povos de história gloriosa, mas, à medida que
se têm elevado, têm sofrido mais, porque sentem mais fortemente do que os
outros a necessidade da união universal. Os grandes conquistadores, os
Tamerlão e os Gengiscão, que percorreram a Terra como furacões,
encarnavam também, sem disso terem consciência, esta aspiração dos povos
para a unidade. Aceitando a púrpura de César, terias fundado o império
universal e dado a paz ao mundo. Com efeito, quem pode dominar os homens
senão aqueles que lhes dominam a consciência e dispõem do pão? Tomamos o
gládio de César e, ao fazê-lo, abandonamos-Te para o seguirmos. Oh! hão-de
passar ainda séculos de licença intelectual, de vã ciência e de antropofagia,
porque é por isso que hão-de acabar, depois de terem edificado sem nós a sua
torre de Babel. Então a besta virá ter connosco, de rastos, lamberá os nossos
pés, regá-los-á com lágrimas de sangue; e subir-lhe-emos para cima e
levantaremos no ar uma taça em que estará gravada a palavra "Mistério!" Só
então a paz e a felicidade reinarão entre os homens. Tens orgulho dos Teus
eleitos, mas são apenas um escol, ao passo que nós daremos o repouso a todos.
De resto, entre esses fortes destinados a serem os eleitos, quantos se cansaram
de esperar, quantos levaram e continuarão a levar para outros pontos as forças
do seu espírito e o ardor do seu coração, quantos acabarão por se insurgir
contra Ti em nome da liberdade. Mas foste Tu quem a deu. Tornaremos os
homens felizes, cessarão as revoltas e chacinas que são inseparáveis da Tua
liberdade. Oh! havemos de persuadi-los de que não serão verdadeiramente
livres senão abdicando da sua liberdade em nosso favor. Pois bem! Diremos a
verdade ou mentiremos? Eles próprios se convencerão de que falamos a
verdade, porque se hão-de lembrar da escravatura e da perturbação em que os
tinha lançado a Tua liberdade. A independência, o pensamento livre, a ciência,
hão-de perdê-los num tal labirinto, hão-de pô-los em presença de tais
prodígios, de tais enigmas, que uns, rebeldes, furiosos, se destruirão a si
próprios, outros, rebeldes, mas fracos, multidão de cobardes e de miseráveis,
se hão-de arrastar aos nossos pés em clamores: "Sim, tínheis razão, só vós
possuís o seu segredo e a vós regressamos; salvai-nos de nós mesmos!" Sem
dúvida, ao receberem de nós os pães, verão bem que são os seus os que
tomamos, os seus, ganhos pelo seu próprio trabalho, para os distribuirmos,
sem nenhum milagre; verão bem que não mudamos as pedras em pão, mas o
recebê-lo das nossas mãos dar-lhes-à mais prazer do que o próprio pão. Hãode
lembrar-se de que outrora esse pão, fruto do seu trabalho, se lhes mudava
em pedra nas mãos, ao passo que depois, quando voltaram a nós, as pedras se
transformaram em pão. Compreenderão o valor da submissão definitiva. E,
enquanto o não compreenderem, os homens serão infelizes. Diz-me: quem
contribuiu mais para esta incompreensão? Quem dividiu o rebanho e o
dispersou pelas estradas desconhecidas? Mas o rebanho se reunirá de novo,
voltará à obediência e, então, será para sempre. Vamos dar-lhes uma
felicidade humilde e branda, uma felicidade adaptada às criaturas fracas que
eles são. Havemos de persuadi-los de que não se orgulhem, porque foste Tu,
ao elevá-los, quem lho ensinou; havemos de provar-lhes que são débeis, que
são umas lamentáveis crianças, mas que a felicidade infantil é a mais
deliciosa. Tornar-se-ão tímidos, não nos perderão de vista e apertar-se-ão a
nós, cheios de medo, como a ninhada que se abriga sob a asa da mãe. Hão-de
sentir uma receosa surpresa e mostrar-se-ão orgulhosos da energia e da
inteligência que nos terão permitido domar a inumerável multidão dos
rebeldes. A nossa cólera fá-los-à tremer, encher-se-ão de timidez, e os olhos se
lhes velarão de lágrimas como nas crianças e nas mulheres; mas, a um sinal
nosso, passarão com a mesma facilidade para o riso e para a alegria, para o
radioso júbilo das crianças.
Havemos, certamente, de os obrigar ao trabalho, mas, nas horas de repouso,
organizar-lhes-emos a vida como um jogo infantil, com cantos, coros e danças
inocentes. Oh! permitir-lhes-emos até que pequem, porque são fracos, e por
isso nos hão-de amar como crianças. Dir-lhes-emos que todo o pecado será
redimido, se o cometerem com permissão nossa; é por amor que os
deixaremos pecar e sobre nós recairá o castigo. Hão-de querer-nos como a
benfeitores que se apresentam diante de Deus com os pecados deles. Não terão
para nós nenhuns segredos. Segundo o grau de obediência, permitir-lhes-emos
ou proibiremos que vivam com as mulheres ou as amantes, que tenham filhos
ou não os tenham; e hão-de escutar-nos com alegria. Hão-de submeter-nos os
segredos mais dolorosos da sua consciência; resolver-lhes-emos todos os
casos e hão-de aceitar a nossa decisão com alegria, porque lhes poupará o
grave cuidado de escolherem por si próprios, livremente. E todos serão felizes,
milhões de criaturas, excepto uns cem mil, os dirigentes, excepto nós, os
depositários do segredo. Os felizes hão-de contar-se por biliões e haverá cem
mil mártires sob a carga do conhecimento maldito do Bem e do Mal. Morrerão
pacificamente, suavemente se extinguirão em Teu nome, e no Além nada
encontrarão senão a morte. Mas guardaremos o segredo: embalá-los-emos,
para sua felicidade, com uma recompensa eterna no Céu. Porque, se houvesse
outra vida, não seria decerto para seres como eles.
Profetiza-se que Tu voltarás para vencer de novo, rodeado dos eleitos,
poderosos e altivos; e nós diremos que só se salvaram a si próprios, ao passo
que nós salvámos o mundo. Pretende-se que a pecadora, montada na besta e
tendo na mão a taça do martírio, será desonrada; que os fracos se revoltarão de
novo, lhe rasgarão a púrpura e desnudarão seu corpo "impuro". Então eu me
levantarei e mostrarei os biliões de felizes que não conheceram o pecado. E
nós, os que tivermos tomado sobre nós as faltas deles, para sua felicidade,
erguer-nos-emos diante de Ti, dizendo: "Não Te receio; também estive no
deserto, também vivi de gafanhotos e de raízes; também abençoei a liberdade
com que favoreceste os homens, também me preparava para figurar entre os
Teus eleitos, os poderosos e os fortes, com um ardente desejo de "completar o
número". Mas dominei-me e não quis servir uma causa insensata. Voltei, para
me juntar aos que corrigiram a Tua obra. Abandonei os altivos, regressei aos
humildes, para os tornar felizes. Sucederá o que Te disse e edificar-se-á o
nosso império. Repito-Te: amanhã, a um sinal que eu fizer, verás o dócil
rebanho trazer brasas para a fogueira a que hás-de subir por teres vindo
entravar a nossa obra. Se alguém mereceu mais que todos a fogueira, esse
alguém és Tu. Amanhã, queimar-Te-ei. Dixi."
Ivã parou. Tinha-se exaltado com o discurso; quando acabou, apareceu-lhe um
sorriso nos lábios.
Aliocha tinha escutado em silêncio, com extrema emoção. Por várias vezes
tinha querido interromper o irmão, mas tinha-se contido.
- Mas... é absurdo! - exclamou, corando. - O teu poema é um elogio a Jesus,
não é uma censura, como querias. Quem vai acreditar o que disseste da
liberdade? Será assim que temos de a entender? É essa a concepção da Igreja
ortodoxa? É Roma, e nem toda ainda, são os piores elementos do catolicismo,
os inquisidores, os Jesuítas. Não existem personagens fantásticas como o teu
inquisidor. Quais são esses pecados dos outros que ele toma sobre si? Quais
são esses detentores do mistério que se carregam de maldições para bem da
humanidade? Quando é que se viu coisa semelhante? Conhecemos os Jesuítas,
diz-se muito mal deles; mas são semelhantes aos teus? De modo algum! É
simplesmente o exército romano, o instrumento da futura dominação
universal, tendo à frente um imperador, o pontífice romano... Eis o ideal que
eles têm; não há aí nenhum mistério, nenhuma tristeza sublime... a sede de
reinar, a vulgar cobiça dos vis bens terrestres... uma espécie de futura servidão
em que deles seriam todos os bens de raiz... eis tudo. Talvez mesmo não
acreditem em Deus. O teu inquisidor não é mais do que uma ficção.
- Espera, espera - disse-lhe rindo lvã. - Como tu te exaltas! Uma ficção? Seja,
evidentemente. No entanto, crês tu que todo o movimento católico dos últimos
séculos seja inspirado somente pela sede do poder, que não tenha em vista
senão os bens terrestres? Não é o Padre Paisius quem te ensina isso?
- Não, não, pelo contrário. O Padre Paisius falou-me uma vez segundo as tuas
vistas... mas não era precisamente a mesma coisa.
- Aí está uma informação preciosa, apesar do teu "não era precisamente a
mesma coisa". Mas por que razão os Jesuítas e os inquisidores se teriam unido
só em vista da felicidade terrestre? Não se poderá encontrar entre eles um
mártir que tenha um nobre sofrimento e que ame a humanidade? Supõe que
entre esses seres, que não anseiam por outra coisa senão pelos bens materiais,
há um só como o meu velho inquisidor que viveu de raízes no deserto e se
bateu por vencer os sentidos, para se tornar livre, para atingir a perfeição; no
entanto, sempre tem o amor da humanidade. De repente, vê tudo claro,
reconhece que é medíocre felicidade a de chegar a uma liberdade perfeita,
quando milhões de criaturas continuam para sempre na desgraça, fracas de
mais para usarem da sua liberdade, que estes débeis revoltados nunca poderão
acabar a sua torre e que não foi para tais gansos que o grande idealista sonhou
a sua harmonia. Depois de ter compreendido tudo isto, o meu inquisidor volta
para trás e junta-se às pessoas inteligentes. É impossível?
- Mas juntar-se a quem? A que pessoas inteligentes? - gritou Aliocha, quase
zangado. – Não são tal inteligentes, não têm mistérios nem segredos... O
ateísmo, eis o segredo. O teu inquisidor não crê em Deus.
- Bem, suponhamos que é assim. Adivinhaste, finalmente. É isso mesmo, todo
o segredo está aí. Mas não é um sofrimento, pelo menos para um homem
como ele que no deserto sacrificou a sua vida ao seu ideal e não deixou de
amar a humanidade? Ao declinarem-lhe os dias, convence-se claramente de
que só os conselhos do grande e terrível Espírito poderiam tomar suportável a
existência dos débeis revoltados, "esses seres de aborto, criados por troça".
Compreende que deve escutar o Espírito profundo, este Espírito de morte e de
ruína e, para o fazer, admitir a mentira e a fraude, levar conscientemente os
homens para a morte e para a ruína, enganando-os durante todo o caminho,
para lhes não revelar onde os levam e para que os pobres cegos tenham a
ilusão da felicidade. Nota isto: a fraude em nome de Aquele em quem o velho
acreditou ardentemente durante toda a sua vida! Não é isto uma infelicidade?
E se houver alguém, se houver um só homem semelhante à frente deste
exército "ávido do poder apenas para os vis bens", não bastará isto para que se
dê uma tragédia? Mais ainda: basta um único chefe semelhante para encarnar
a verdadeira ideia directriz do catolicismo romano, com os seus exércitos e os
seus jesuítas, a ideia superior. Declaro-te que estou convencido de que nunca
faltou um homem deste tipo à frente do movimento. Quem sabe? Talvez haja
alguns entre os pontífices romanos! Quem sabe? Talvez que esse maldito
velho que ama tão obstinadamente a humanidade, à sua maneira, exista ainda
agora em vários exemplares, não por efeito do acaso, mas sob a forma de um
entendimento, duma liga secreta, organizada já há muito tempo para guardar o
mistério, ocultá-lo aos desgraçados e aos fracos para os tornar felizes. Deve
seguramente ser assim; é fatal. Imagino mesmo que a maçonaria tem um
mistério análogo na base da sua doutrina e que deve ser por isso que os
católicos odeiam tanto os mações; vêem neles concorrentes, vêem neles uma
dispersão da ideia única, quando deve existir apenas um rebanho com um
único pastor. Mas basta: não quero ter, com esta defesa do meu pensamento, o
ar de um autor que não suporta a tua crítica.
- Talvez tu sejas também mação - disse de súbito Aliocha. - Não acreditas em
Deus - continuou com profunda tristeza. Tinha-lhe parecido também que o
irmão o contemplava com ar de troça. - Como acaba o teu poema? -
prosseguiu ele, baixando os olhos. - Não há mais nada?
- Há. O fim que eu tinha pensado era este: "O inquisidor cala-se, espera um
momento a resposta do Preso. O Seu silêncio oprime-o. O Cativo escutou-o
sempre fixando nele o olhar penetrante e calmo, visivelmente decidido a não
lhe responder. O velho gostaria de que Ele lhe dissesse alguma coisa, mesmo
que fossem palavras amargas e terríveis. De repente, o Preso aproxima-se em
silêncio do nonagenário e beija-lhe os lábios exangues. Mais nenhuma
resposta. O velho tem um sobressalto, mexe os lábios; vai até à porta, abre-a e
diz: "Vai e nunca mais voltes... nunca mais." E deixa-o ir, nas trevas da
cidade. O Preso vai.
- E o velho?
O beijo queimou-lhe o coração, mas persiste na sua Ideia.

A FELICIDADE






DEPOIS QUE ENVEREDEI PELO CAMINHO DA MAGIA, TRASFORMANDO SETE COMPUTADORES EM QUATRO, DEPOIS DE VIR PASSAR NA FRENTE DE MINHA CASA CANDIDATOS A PREFEITO DIZENDO QUE AGORA VAI SER DIFERENTE, DEPOIS DE VER O FRACASSO COSTUMEIRO NAS OLIMPÍADAS SER SUAVIZADO PELOS CRONISTAS ESPORTIVOS DA GLOBO, QUE ACHAM EXCELENTE O FATO DE TODA A DELEGAÇÃO ESPORTIVA BRASILEIRA NÃO TER CONSEGUIDO NEM A METADE DO QUE UM ÚNICO ATLETA AMERICANO CONSEGUIU, DEPOIS DE CONSTATAR QUE OS IMBECIS DE SEMPRE CONTINUARÃO MANDANDO SEMPRE, E QUE ANA PAULA ARÓSIO NÃO VAI ME DAR BOLA MESMO, DEPOIS DE CONSTATAR QUE O JORNAL DE DOMINGO SAI MAIS GROSSO, NÃO PORQUE ACONTEÇA MAIS COISAS NO DOMINGO, E SIM PORQUE SÃO PRODUZIDAS-INVENTADAS MAIS NOTÍCIAS NESSE DIA, DEPOIS DE ESCUTAR NOTÍCIAS POLICIAIS, SABER QUE DEPOIS DE UMA NOVELA VEM OUTRA, QUE OS PAÍSES DO ORIENTE MÉDIO ESTÃO MAIS TACANHOS QUE O QUE SE PODIA SUPOR MESMO PARA OS PAÍSES DO ORIENTE MÉDIO, DEPOIS DE SONHAR COM UM ANIMAL MIANDO E PERDER 10 PRATAS PORQUE JOGUEI NO GATO QUANDO O BICHO SORTEADO FOI AVESTRUZ E CONSTATAR ESTUPEFACTO O CAMBISTA DIZER QUE EU NÃO "INTERPRETEI BEM OS SONHOS QUE TIVE", DEPOIS DE PENSAR QUE O QUE EU JULGAVA TER ACONTECIDO ONTEM( A CONQUISTA DO TÍTULO MUNDIAL DA COPA DE 94) JÁ ESTAR DISTANTE 14 ANOS, , APESAR DE EU DEIXAR MEU FILHO FAZER 8 X 0 EM CAMPEONATO DE VIDEO GAME E ELE DIZER( COM A RETRIBUIÇÃO PRÓPRIA DOS FILHOS) QUE EU ERA UM "PATO", DEPOIS DE DESCOBRIR QUE A INTERNET NÃO TEM A VELOCIDADE QUE OS ANUNCIANTES DIZEM TER, DEPOIS DE CONFERIR MAIS UM RESULTADO DA RODADA E VER A COLOCAÇÃO DO VASCO NA TABELA.
APESAR DISSO, SIGO FELIZ, MUITO FELIZ.

sábado, 23 de agosto de 2008

HAMLET







HAMLET, É SIM O LIVRO DOS LIVROS, COMO SHAKESPEARE É SIM O ESCRITOR DOS ESCRITORES.


VENHO DE LER UM E-MAIL DO NOVAES (HERCÍLIA O CHAMAVA ASSIM, EU GOSTO DELA, ELA ME EXCLUIU DO ORKUT . SIGO GOSTANDO DELA ASSIM MESMO . PORQUE AS PESSOAS BRIGAM?), NO E-MAIL DO NOVAES TEM UM CARA (ADOREI O TEXTO DELE, QUE É VERDADEIRO, BEM ESCRITO, EMBORA NÃO COMPORTE MARCELO, QUE É UMA EXCESSÃO.)O CARA DEFENDE A TESE QUE NÃO EXISTE O "GÊNIO", "O ESCOLHIDO POR DEUS", O SHAKESPEARE REAL, QUE TUDO SE DEVE A UMA GLAMOURIZAÇÃO DA CULTURA EUROPÉIA.


EU NUNCA FUI ELITE DE ESPÉCIE ALGUMA, NÃO ADMIRO CULTURA NEM CONTINENTES, TAMPOUCO ACREDITO NO QUE VENHA CONDICIONADO A COLETIVIDADE. NO ENTANTO ATÉ HOJE NÃO ME APRESENTARAM UM ESCRITOR SEMELHANTE A SHAKESPEARE. FALO NÃO DE UM IGUAL , MAS SEMELHANTE. QUANDO OS CARAS VEM DIZER: "ELE NÃO FOI O TAL" EU QUERIA QUE ME MOSTRASSE (SERIA MARAVILHOSO) ESSE GRANDE ESCRITOR JAPÔNES, GUATEMALTECO, INDIANO OU DE ONDE SEJA , QUE SE EQUIPARASSE A ELE.


A SUPERIORIDADE É ENORME, NÃO HÁ COMPARAÇÃO. QUALQUER ESCRITOR, DE QUALQUER PAÍS, TEMPO, ESCOLA LITERÁRIA, O DIABO, SOME PERTO DELE.

QUANDO FALO DELE NÃO HÁ NENHUMA SUBMISSÃO A CULTURA EUROPÉIA, O QUE HÁ É A CONSTATAÇÃO DE QUE ATÉ HOJE NINGUÉM QUE EU TENHA CONHECIDO ESCREVEU IGUAL A ELE. NENHUM ESCRITOR TERIA OU TEM A CAPACIDADE DE ESCREVER HAMLET. O QUE INCOMODA EM BLOOM, É A VERDADE.

MIRSE DISSE QUE NÃO ENTENDE BEM HAMLET. BLOOM DISSE QUE LECIONA SHAKESPEARE HÁ DÉCADAS E NÃO O COMPREENDE POR INTEIRO.
EU LI UMAS VINTE VEZES O HAMLET, COM TRADUÇÕES DIFERENTES, VI QUASE TODAS AS PRODUÇÕES IMPORTANTES CINEMATOGRÁFICAS, (LAURENCE OLIVIER, KENNETH BRANAGH, MEL GIBSON, LI O "SHAKESPEARE: A INVENÇÃO DO HUMANO", ENSAIOS SOBRE HAMLET EU LI UNS 30, E SEMPRE PARA MIM É UMA COISA NOVA.
ISSO PARECE UJMA REPETIÇÃO RIDÍCULA E SEM ERUDIÇÃO DO QUE BLOOM ESCREVEU(E É), MAS HÁ QUE SE CONFERIR QUE OS SOLILÓQUIOS HAMLETIANOS SÃO SOBRENATURAIS, ANORMAIS, ELE SÓ DIZ FRASES DESCONCERTANTES, GENIAIS. A MAIOR DELAS, PARA MIM É: "NADA EM SI É BOM OU RUIM, NÓS É QUE MOLDAMOS AS COISAS ÀS NOSSAS CONVENIÊNCIAS", A FRASE NÃO É BEM ESTA,MAS O SENTIDO É.
HAMLET NÃO PODE (COMO FEZ BLOOM) SER COMPARADO A JESUS CRISTO, POR QUE CRISTO NÃO TINHA PRETENÇÃO LITERÁRIA, EMBORA O PRÓPRIO BLOOM, DIGA EM OUTRO LIVRO QUE JESUS PODERIA SOBRESSAIR-SE EM UMA DISCUSSÃO COM HAMLET( ELE FEZ ESSA AFIRMAÇÃO TÃO RIDÍCULA, QUE CHEGA A SER PUERIL.) , JESUS PARA MIM É O SALVADOR, SENÃO É ELE NÃO É NINGUÉM, OU ELE OU O ATEÍSMO. ABAIXO DE JESUS( ZILHÕES DE QUILOMÊTROS) EM SE TRATANDO DE INTELECTO SUPERIOR SÓ CONHECIDO POR LIVRO, HAMLET HUMILHA, ELE FALA DE QUASE TUDO, E NINGUÉM FOI MAIS FUNDO QUE ELE.

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

SHAKESPEARE

LI, LEIO, LEREI SHAKESPEARE PORQUE É MUITO BOM FAZÊ-LO, SOBRETUDO POR ISSO, O MAIS VEM À REBOQUE DISSO.
O MAIS EMPEDERNIDO DOS INTELECTUAIS ENCLAUSURADO EM SUA GÓTICA BIBLIOTECA, AO MAIS DESINTERESSADO ADOLESCENTE, QUALQUER SER HUMANO RAZOÁVEL, PODE ENTENDER O QUE ELE COMUNICA, E MAIS, PODE ADQUIRIR SABEDORIA PLENA E REAL.
SHAKESPEARE FOI, E SEMPRE SERÁ UM INTELECTO SEM PARALELO, MAS, SOBRETUDO, UM QUE PODE COMUNICAR O QUE QUER.
SUA OBRA FOI QUASE TODA FILMADA POR CINEASTAS AMERICANOS, MAS AINDA ASSIM CONSERVA POR UM LADO SUA CAPACIDADE DE CLAREAR E DE SER INTERROGATIVA, E POR OUTRA SUA ERUDIÇÃO.
SOARES DIZ BRINCANDO, QUE AO LER SHAKESPEARE VOCÊ NÃO ENCONTRA UM "BOM DIA". COM SUA SIMPLICIDADE DE HUMORISTA E SEU GIGANTISMO INTELECTUAL, SOARES, DEFINE DE FORMA DEFINITIVA O GÊNIO INGLÊS.
SEUS LIVROS SE POPULARIZARAM A PONTO DE FAZÊ-LO UM DOS NOMES MAIS CONHECIDOS DO PLANETA, MAS NÃO HÁ UM LIVRO ESCRITO POR ELE QUE SEJA MENOR A QUALQUER OUTRO SE A QUESTÃO É ERUDIÇÃO.
JÁ SE DISSE TUDO DELE, MAS QUEM MELHOR O DEFINIU FOI HAROLD BLOOM, CLARO QUE BLOOM QUER DESUMANIZÁ-LO, FAZÊ-LO UM DEUS DOS ATEUS, MAS TIRANDO ISSO, ELE FOI O QUE BLOOM DIZ MESMO. TUDO QUE VOCÊ LER DE SHAKESPEARE, MAS TUDO MESMO, LHE DÁ A IMPRESSÃO DE JÁ TER VISTO OU OUVIDO ANTES, EM OUTRO LIVRO, EM OUTRO LUGAR, SÓ QUE ELE VEIO ANTES.
SE FOSSE MEU AMIGO MARCELO, DIRIA: ELE É O GÊNIO ANTERIOR AO GÊNIO.
E TEM OS SONETOS. ELE NÃO ERA POETA, MAS CREIO QUE NOS SONETOS QUE ESCREVEU PARA SUA AMADA OU AMADO, ELE FOI SUPERIOR AOS POETAS TODOS QUE EU CONHECI ATÉ HOJE.
VOCÊ NÃO LÊ UM LIVRO DELE EM QUE NÃO SE DEPARE A CADA MEIA PÁGINA COM UM PENSAMENTO, UMA FRASE GENIAL.
QUANTOS LIVROS(VAMOS COMPARAR) QUANTOS LIVROS ESCRITOS ATÉ HOJE SE COMPARAM A REI LEAR?
POUCOS, QUASE NENHUM. GOETHE, COM O FAUSTO, SE EQUIPARA, NÃO ULTRAPASSA MAS SE EMPARELHA. SÓ QUE SHAKESPEARE ESCREVEU MAIS DE TRINTA, E O MAIS IRRELEVANTE DELES, FAZ "MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS", UM LIVRO SEM SAL, O MENOR LIVRO DELE É SUPERIOR A QUASE TUDO QUE SE ESCREVEU ANTES E DEPOIS DELE.
O TEMPO NÃO O DEIXOU ULTRAPASSADO. HÁ ESTÓRIAS GENIAIS (DOM QUIXOTE), QUE HOJE NÃO SUSCITAM O MENOR INTERESSE EM QUEM NÃO GOSTA DE LITERATURA. SHAKESPEARE É CITADO ATÉ POR ANALFABETOS (EXISTEM MAIS COISAS ENTRE O CÉU E A TERRA HORÁCIO, QUE SUPÕE TUA FILOSOFIA), NO ENTANTO, DESCONHEÇO AUTOR MAIS ERUDITO QUE ELE.

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

MAIS JOÃO.


ADEMIR DA GUIA


JOÃO CABRAL DE MELO NETO


Ademir impõe com seu jogo
o ritmo do chumbo (e o peso),
da lesma, da câmara lenta,
do homem dentro do pesadelo.


Ritmo líquido se infiltrando
no adversário, grosso, de dentro,
impondo-lhe o que ele deseja,
mandando nele, apodrecendo-o


Ritmo morno, de andar na areia,
de água doente de alagados,
entorpecendo e então atando
o mais irrequieto adversário.

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

TIBSHEE

MIRSE ME PEDIU QUE ESCREVESSE UM POEMA, EU ADORO ELA (ESSA PALAVRA SE VULGARIZOU NO ORKUT, TODO MUNDO LÁ, "SE ADORA").POR ISSO FAREI.
MAS ENTES DEVO CONFORTAR AOS QUE POR ACASO LEREM AO TAL POEMA QUE NÃO SERÁ MAIS QUE UM.


TIBSHEE!!!!!!!!!!!!!!!!!


NÃO SABE O QUE É?
NÃO VOU LHE DIZER.
E COISA SÓ MINHA,
COISA GUARDADA,
ONDE FICAM
COISAS MARCADAS,
NO LENTO DO TEMPO,
NO VENTRE DO NADA.


MAS NÃO TE SONEGO,
TE DOU UM TEBISHEE,
EMBORA NÃO POSSA
SENTÍ-LO OU SABÉ-LO.
POR SER SÓ DE MIM,
POR SER MEU INTEIRO.

TE DOU COMO AXÉ,
EMBORA NÃO SEJA.
TIBISHEE PRA TI,
QUANDO RELAMPEJA.
QUANDO ESMORECE,
QUANDO ESBRAVEJA.


NÃO TE POSSO EXPLICAR,
AINDA QUE O QUISESSE.
VOCÊ ME EXPLICA
O QUE VOCÊ NÃO CONHECE?
COMO NO OLHAR,
DE DEUS NO OLHO DO CÃO,
NEVE SÓ VISTA NA TELEVISÃO.

TE DOU UMA PISTA,
TE DEIXO UM SINAL.
TIBSHEE É O SOM
QUE FAZ O MEU FILHO.
TIBSHEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEE!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

ACHA QUE ENTENDEU O TBSHIEEE?
SÓ SE FOR PAI,
SÓ SE FOR BOM PAI.
SÓ SE QUANDO TEU NENÉM ADOECER COM UMA GRIPE BOBA, IMAGINAR A DOR QUE SENTIRIAS SE ELE MORRESSE.

terça-feira, 5 de agosto de 2008

ISSO É O QUE HÁ!

O ESCUDO, O ELMO E A SOMBRA.

MARCELO NOVAES


Ele fermenta a partir das uvas
pretas,
dos bagos pisados das uvas
pretas.
E dele eu me embriago.
Não bebo como ensinou
Teofrasto,
cortando o vinho em água,
ou em carne antes
degustada.
Não, eu me embriago
de verdade,
eu visto a máscara
que me distorce,
e ela me cola
no rosto.



Eu fermento e me contorço
a partir dos bagos pisados.
Eu sou o filho mal-gerado,
que bebo e copulo bebo e copulo
bebo e copulo e bebo, sem fim,
para compensar a falta de amor
do ato que a mim
me gerou.
Eu sou o filho do
estupro.


Eu sou o pária exilado em mim,
e tenho sede de amor.
Por isso bebo e copulo bebo e
copulo e bebo,
e a máscara me cola
ao rosto,
compacta,
sem alívio.
O meu caminho é cheio de
escolhos,
o meu vigor e meu amor
próprio, sem o álcool,
são tais quais o movimento
ondulatório
de um peixe morto e
e o desejo sexual
de um defunto.
Sem febre e fogo,
eu sou um dejeto.


Que se derrame, sobre mim,
então,
o vinho tinto ou o vinho branco,
como o esperma se derrama
sobre o óvulo que era
infecundo no útero
murcho, mas que
inchou ao sofrer
abuso.


Porque bebo, eu
posso!
Porque bebo, agora
vivo!
E parece de menos que eu prossiga
como um ébrio se assim existo,
ao menos.


Se não gosta disso,
dê-me, então, uma
escolha, ou um gole,
dê-me um copo ou
um colo onde eu
me encolha,
dê-me olhos que me tirem
o véu que nublou o mundo.
O mundo já tão nublado por
bruma véu gaze febre e fome,
por um cortinado em torno de
um berço abandonado.
Dê-me um gole!
Somente mais um gole!
Eu estou aqui pra te dizer que
estou aqui,
cambaleando, mas
de pé.


Quisera eu nunca ter sido
pra não te constranger na
hora do teu casamento.
Eu vim aqui pra te dizer
isso.


Eu vim aqui pra me casar
com você.
Salve-me de mim, se por acaso
podes.


Eu já não sei o que fazer.
Tente me compreender
quando insisto que, para
mim e por mim mesmo,
não encontro meios. Só
por Cristo, e por você,
talvez.


Eu vim aqui para dizer
que não sei se posso,
sóbrio.


Eu vim aqui para dizer
que me assusta o ócio,
ainda que eu nada saiba
fazer.


Respeite o meu desejo
de silêncio, que reside
e dorme bem no meio
do meu medo de ouvir
o silêncio entre os teus
seios.


Eu vim aqui para dizer
que estou aqui,
ainda que pareça alheio,
bárbaro, nômade, errante,
estrangeiro.
E sou.
Mas quero te dar um lar
e dá-lo a mim.


E devo ser, talvez, mais
do que esta máscara de
bêbado, ainda que,
quando a tire
de mim,
eu nada
me saiba.


Mas eu estou aqui,
tremendo dentro de mim
mesmo,
essencialmente três:
palavra, alma e
máscara.


E eu vim aqui pra te entregar
meu medo, junto com a aliança
que perdi no caminho.
Esse medo expresso nos meus
olhos baços,
que te parecem lindos
que você acha lindos
quando eu não
bebo.


Mas ontem e hoje e sempre,
que eu me lembre,
eu bebi
e copulei e bebi e copulei e
bebi e copulei,
para sentir uma nesga
do amor que, talvez,
esteja em
ti.
Mas ontem te traí,
devo dizer,aqui.


Por isso, releve a minha
embriaguez, pois te confesso
em público
o erro, nessa centésima trigésima
vez, nesta hora em que expresso todo
meu arrependimento e minha fraqueza,
de joelhos.


Eu sou o mendigo,
você a senhora
de meu destino.
Eu sou o exilado
em toda terra que
piso,
o bandido,
o arlequim,
o bandoleiro,
o trágico,
o palhaço.


Eu sou o outro filho de Dioniso,
o que implode em vez de disparar
tiro.


Eu sou aquele que sofre e faz sofrer,
sem encontrar gozo ou alívio.
Eu sou o pária expulso do corpo e do
riso.


Eu sou o meu desgosto o teu desgosto
aqui expresso, de joelhos, patético,
farsesco, fraudulento, estrangeiro
para ti para mim para os outros,
em meu próprio
casamento.


Eu me contorço e fermento,
copulo e bebo e copulo e te
traio e copulo e bebo,
mas não me contento,
nem me conforto.


Eu sou um outro de fora
que veio habitar o dentro,
e não foi aceito.


Meu ponto fraco é inteiro,
e eu mesmo sou pedaço.


O que eu seguro me escapa pelos
dedos,
como a aliança de casamento que
eu perdi, a esmo, no caminho.
Porque nem sigo reto,
porque me inclino sempre à direita,
como um escritor que está ficando
cego.


Eu sou um rosto a ser descoberto
por tuas mãos, por teu beijo, por
teu afeto.
Eu sou um ébrio que pareço um
encosto,
um mendigo que pareço pedir
teu sacrifício e tua falta de
sono pra me esperar
chegar enquanto
nunca amanhece,
quando o sol se
esquece de
acordar.


Eu te trago a dúvida.
Eu faço dívidas.
Talvez seja essa a outra
coisa que te aterrorize
além da aliança que
deixei cair. Eu faço
dívidas, e você
não quer
dividir.


Em contrapartida,
quando eu empresto, não
me pagam. Eu sou tido por
desonesto, quando sou fraco
e desonesto.Os dois. É mais
complexo.Eu sou o negativo
do que pareço.Mas não sou
vingativo.


Eu não atiro, eu não machuco,
eu não lincho,
eu me desmancho e cedo,
e choro à beira da sarjeta
e do abismo,
e prometo aos que passam
o que não tenho.
E chamo de amigos,
porque os quero amigos,
os que não
conheço.


Eu conto história de um
passado que eu invento,
talvez pra parecer um outro,
completamente outro, eu que
sou sombra, elmo e
escudo.


Eu que sou roto, quase
afogado em álcool.
Eu não tenho critérios,
eu não tenho os meios,
eu não sei ler os instrumentos
aéreos


para me sentir elevado quando bebo,
para me sentir inspirado leve alado enlevado
com o fogo que, em mim,
fermenta.


Eu sou balão à deriva,
sem bússola, sem pára
-quedas.


Eu sou o herói pára-raios
sob a chuva,
o filho frágil que não
se sustenta,
entregue à
borrasca.


Eu sou luz lilás, mas nefasta,
coberta com crosta negra,
calcinada.


Eu ofereço espetáculo
gratuito, quando tropeço
na calçada,
quando peço um troco ou
um trago.


Eu estraguei a vida de muitos
e a minha própria.
Eu me dei a mim mesmo como
oferta inóspita.


Cantam contam cantam a minha
história a minha ânsia a minha perda
no coro da tragédia
grega.


Eu sou o que vaga entre os mortos, em
vida.


Ainda assim, eu estou aqui para dizer
que estou aqui mesmo, para dizer que
sim e que te aceito, mesmo tendo
perdido nossa aliança de
casamento.


Faça-me potável, não mais ébrio e
sujo, faça-me querido,
faça de mim sair um homem inteiro,
o homem bom que possa estar embutido.
Faça-me sorver teu sim como um remédio,
e salva-me de mim mesmo,
e me dá abrigo.


Dê-me a carne e o pão, dê-me a tua carne e
me tire o vinho, pois não sei ser são sorvendo
fogo não sei adoçar o fogo alisar o fogo acariciar
o fogo amansar o fogo que me dói por dentro.
Sopra, então, em mim o teu alento.
Mistura um pouco do teu vento
e do teu óleo bento no meu beijo
azul noturno.


Eu sou um ébrio e eu me contorço
e fermento e existo como um escolho
como obstáculo na vida dos que eu
escolho.


Abra o olho, meu amor.Ou melhor,
feche os olhos pro meu beijo escuro.
Nem eu mesmo sei bem o que quero.
Eu sei o que não posso. Eu sei como me
pareço: como novilho ou lobo preso no
emaranhado espesso de arbustos com
espinhos negros.


Eu me pareço assim, sozinho, mesmo
com você.


E ainda que eu queira e teime e trema
e me exprema e me ajoelhe, sinto que
você não poderá dar jeito nesse meu
fundo vermelho sobre negro.


Eu sou complexo em mim mesmo,
vermelho azul e negro. Nigérrimo.
Eu sou o pária dos párias,
um cão mordendo um pedaço de
madeira.


Então, não se case! Acorde!
Enterre-me ali mesmo, ou
deixe-me à beira do abismo,
e não deixe de plantar por perto
um cepo de videira!
E que todas as montanhas sejam
minhas!


E que não haja mulher que me queira!
Vou-me embora a pé, andando em curvas,
como cheguei. E te peço, por mais que te pareça
estranho: não e procure mais, me esqueça!
Eu estarei chorando girassóis como sempre fiz,
na sarjeta.


Você não me quer mais,
porque não me quer
bêbado. Eu sinto.
Vejo nos teus olhos,
tens medo do vinho
e do absinto.
Você não pode comigo.
Não creio que jogue a corda no
fim do poço sem fim sem cair junto.
Nem que possa tocar alcançar a dor
que mora em mim como um filho
dorme ao
relento.


Você não pode comigo, para viver ou
morrer comigo, de joelhos, com o punho
fechado sobre o peito, rezando aos monstros
do caos primeiro. Não podes me acompanhar
na noite de mim mesmo.
Eu não creio!
E cuspo aqui no chão, agora, em frente ao altar,
para expressar meu desprezo por tua compaixão!
Pode você suportar um eclipse do sol com o olho aberto?!
Duvido!


Deixo-te aqui! Cala-te! Pára de chorar!
Pode você aplacar os poderes do inferno,
sem se deixar fulminar?!
Eu sou o bago pisado da uva negra,
e o peso do pé que me pisou você
não suporta,
nem dividir minha ânsia, meu andar
-sem-saber, meu frio que não encontra
calor, meu calor que nunca amansa.
Duvido! Quem é você?! Pote de
lágrimas e náuseas com presunção
de Madre Teresa, ou Nossa Senhora?!
É você divina ou metade divina, ou é
metade vermelha verme e azul noturna,
como eu sou inteiro?!


Você não pode seguir em paz com satanás
do seu lado. Você não é santa, não me engana.
Não se faça de ingênua à cabeceira de minha cama.
Quando eu te conheci nem virgem mais era, nem fui
eu que te fiz mulher! Como perdoar você, me diga?!
Como me perdoar por querer me casar com você?!
Só indo embora...


Eu devia estar bêbado quando te
encontrei na noite virulenta sem luz e sem fogueira.
E eu já quase estava a me comprometer com você,
com tuas ambivalências, com tua prepotência,
com tua arrogância de imaginar poder salvar
alguém. Teu lugar é o da pergunta, e não o de
me dar respostas, cadela imunda e presunçosa!
Eu sou teu rei, mesmo ébrio, porque te faço
parecer boa e sã e boa, quando o que tu sabes
fazer mesmo e de melhor é dormir com os
meus amigos e com os que me desprezam!


Então, diz pra mim, como amar a ti?!
Pedes muito a mim, que mude. Eu,
refugo de mim, desde a origem.
Minhas costas doem, meu estômago
chora e enjoa, mas quer mais um gole.
Só mais um copo ou dois. Prove agora
que me ama, saia daqui e me acompanhe!
Beba comigo, mesmo que seja só por mim!
Duvido, manequim de Madre Tereza!
Duvido que possas comigo, sempre em
metamorfose, como Raul Seixas, sempre
fora de mim e mutante para me sentir mais
vivo! Você é frágil, tola, arrogante, jamais
teria sobrevivido ao fogo que eu bebo!
Eu conheço o vinho! Eu conheço o
sofrimento!


Você conhece a mim e o arder sem fim
de um desejo inquieto?! Duvido!
Tenho pena de ti. Pena não, tenho nojo!
Não serei o teu escravo, só porque
te fecundei por acaso!
Queres me aprisionar?
Quer me aprisionar
no teu calabouço?
Na tua vida de repouso, enfado, banho,
jantar e almoço?
Eu sou bêbado, mas não sou cão
para se adestrar, nem sou esse feto
que você carrega por não ter coragem
de tirar! Não é amor, é medo!
Você é a escória que quer me escorar!
Mas eu te escorraço agora! Porque sei que você
tem nojo do seu filho, tanto quanto eu tenho nojo
e desprezo por vocês dois, e de mim mesmo.
E você também tem nojo e medo de mim,
não me negue, vejo no teu rosto!


Está aí exposto, na frente do padre e de
todos! Não se ausente, não seja covarde
como eu tenho sido, antes que seja tarde!
Confronte-me! Confronte-se comigo!
Se me ama tanto assim, corra atrás de
mim sem se desesperar! Não aceito
mulher sem postura! Eu sou bêbado,
mas tenho os meus critérios!E você não
pode comigo, nem com o que eu sinto e
vejo. Você não pode suportar os cem
cavalos negros de São Tomás de Aquino
com seus cascos cinzentos, que cavalgam
sob o céu
e sobre o vento, você não pode com esse
galope de cem cavalos coriscando raios,
ainda mais que está grávida! Você não
suportaria os raios, nem o sol negro,
nem o olho mau de Deus, nem tudo
o que eu conheço, sem sentar numa
cadeira deitar-se numa cama e pedir
arrego!


Você não aguenta o galope de cem cavalos
irados sobre a cabeça!Então reconheça e se
despeça. Vou-me embora! Eu que sou três:
copo, palavra alada, e alma. Eu que sou três,
também: sombra, escudo e
elmo.


E se me despir,
será longe
daqui.



Marcelo Novaes

sábado, 2 de agosto de 2008

MAIS MARCELO NOVAES, EM TRECHOS GENIAIS.

ESSE É UM PEQUENO APANHADO DOS POEMAS DE MARCELO NOVAES, O QUE FAZ EU CRER QUE A POESIA NÃO MORREU, QUE A FONTE NUNCA SECA.


É só pra isso
que existem
olhos e
ouvidos.
Pra se ver o rosto
branco de quem
carrega o caixão
paterno.



Butoh




É como se eu acendesse,
vez seguida às tantas vezes,
sem que ninguém por mim
intercedesse,
a mesma faísca.
É como se eu me lembrasse
e rememorasse e tentasse
corrigir,
a primeira sílaba errada
da palavra que já engoli.



A túnica de Nessus





Já tinha passe-livre,
era clássico e free. Poema
banto, batuque e taoísmo,
nobreza de rei na hora da
perda do filho jovem, em acidente.
Já era cidadão quando não havia cidadania aqui.
Foi execer a sua em Londres,


O cravo e o sabonete








Eu sou a tua companhia secreta,
desde a sombra das idades.
Eu sou o Poeta dos poetas.
Sou a resposta à tua invocação
por um pressuposto bom,
até então ausente.
Eu sou o pressuposto,
o olho onisciente antes
do teu rosto.
Afasto o que te ameaça
a partir de dentro, desde
que me saibas em teu
íntimo.
É só o que peço,
que não restrinjas o meu espaço
e me consintas para que caiba
por entre as frestas do teu
desejo por tantas outras
coisas que não eu mesmo.
Eu sou o bem que, por enquanto,
só se vê de longe,
ainda que venha antes e anteceda
toda a tragédia que te constrange.
Eu sou o que vê por detrás de tua
face congelada, onde te olha a nuca,
quando te viras e não vês
nada.



O olho que te olha a nuca


Eu conto história de um
passado que eu invento,
talvez pra parecer um outro,
completamente outro, eu que
sou sombra, elmo e
escudo.




O escudo, o elmo e a sombra.


.
Do mar eu sabia a
bruma,não sabia a
lama.
Eu não conhecia o
pântano dentro do
mar.
Do mar eu conhecia
escamas, não a
ganga.



À imagem e semelhança





fez lembrar do verbo
quando sofre o sonho
ausente: íris sem
olhos,
tronco sem
membros,
boca sem
dentes,
dorso membranoso como
o de um
lagarto;
timbre e dicção
de dar nos
nervos.


A mulher verde



Eu não poderia,
jamais,
expressar
essas veemências
sentimentais,
que voluteiam e se
resolvem a si
mesmas,
e se dissolvem,
enquanto tais,
no instante mesmo
em que se
expressam.




Quaresma




Compreendi a fantástica
esfera
de lava e fogo
que mora na boca
do estômago.
Sentado,
beijei minha própria face
machucada,
dentro de minha
respiração:



A franja branca daluz




"Creio que muita coisa boa surgirá na Net. Não necessariamente publicada. Mas falada de boca em boca. Algo análogo à literatura oral, num primeiro momento. Oral-digital."

Maecelo Novaes em entrevista a Hercília Fernandes.