Marcelo Novaes escreveu “o escudo, o elmo e a sobra.” Uma obra de arte. Postei aqui duas vezes este poema, postarei sempre.
Há dois tipos de seres, só isso, não mais que isso. A saber: os cretinos e o não cretinos.
Qualquer ser humano normal, que seja minimamente letrado, ao ler o “escudo... ,” e não ficar pasmo, tem pouco o que se dizer dele. Ou nada.
Marcelo diz, e com razão, que não é autor de um poema só. De fato, os poemas dele são muitos, bons, geniais.
Mas sem delongas, como diria..., bom, ninguém usaria uma palavra dessas.
A insistência no poema não é oriunda (agora deu a peste!) de nenhuma espécie de predileção por autor, ou coisa que o valha, tivesse sido escrito por qualquer poeta eu adoraria, e se eu não gostasse do autor (não é o caso), e se detestasse tudo que fora escrito pelo poeta (menos ainda) conservaria todo o amor que tenho por esse poema e pelo seu personagem ambíguo, inviesado, visceral.
Este poema é o máximo que concebo quando penso em arte.
Arte, na minha cabeça, é uma realidade subjacente, uma realidade colorida, com coloração pessoal. Há os que prefiram o preto, ou o azul, outros o rosa. A arte é isso: imprimir à realidade um caráter pessoal, um valor que transforme o azul, que é só uma cor, em um azul superior. Um azul verdade.
Ao poema:
O ESCUDO O ELMO E A SOMBRA
Para Wellington
Ele fermenta a partir das uvas
Pretas, dos bagos pisados das
Uvas pretas
E dele eu me embriago
Não bebo como ensinou
Teofrasto, cortando o
Vinho em água, ou em
Carne antes degustada.
Não, eu me embriago
De verdade. Eu visto
A máscara que me
Distorce, e ela me
Cola ao rosto.
Eu fermento e me contorço,
A partir dos bagos pisados.
Eu sou o filho mau gerado,
Que bebo e copulo bebo e copulo
Bebo e copulo e bebo, sem fim,
Para compensar a falta de amor
Do ato que a mim
Me gerou
Eu sou o filho do estupro.
Eu sou o pária exilado em mim,
E tenho sede de amor.
Por isso bebo e copulo bebo
E copulo e bebo, e a máscara
Me cola ao rosto, compacta,
Sem alívio.
O meu caminho é cheio de
escolhos, o meu vigor e meu
amor próprio, sem o álcool,
são tais quais o movimento
ondulatório de um peixe morto
e o desejo sexual de um defunto.
Sem febre e fogo
Eu sou um dejeto.
Que se derrame, sobre mim,
Então, o vinho tinto ou o vinho
Branco, como o esperma se derrama
Sobre o óvulo que era infecundo no útero
Murcho, mas que inchou ao sofrer abuso.
Porque bebo, eu
Posso!
Porque bebo, agora
Vivo!
E parece de menos que eu prossiga
como um ébrio se assim existo,
ao menos.
Se não gosta disso,
Dê-me, então, uma
Escolha, ou um gole,
Dê-me um copo ou
Um colo onde eu
Me encolha,
Dê-me olhos que me tirem
O véu que nublou o mundo.
O mundo já tão nublado por
Bruma véu gaze febre e fome,
Por um cortinado em torno de um berço abandonado.
Dê-me um gole!
Somente mais um gole!
Eu estou aqui pra te dizer que
Estou aqui, cambaleando, mas
De pé.
Quisera eu nunca ter sido
Pra não te constranger na
hora do casamento.
Eu vim aqui pra te dizer
isso.
Eu vim aqui pra me casar
com você.
Salve-me de mim, se por acaso
Podes.
Eu já não sei o que fazer.
Tente me compreender
Quando insisto que, para
Mim e por mim mesmo,
Não encontro meios. Só
Por Cristo, e por você,
Talvez.
Eu vim aqui para dizer
Que não sei se posso,
Sóbrio.
Eu vim aqui para dizer
Que me assusta o ócio,
Ainda que eu nada saiba
Fazer.
Respeite o meu desejo
De silêncio, que reside
E dorme bem no meio
Do meu medo de ouvir
O silêncio entre os teus
Seios.
Eu vim aqui para dizer
Que estou aqui, ainda
Que pareça alheio,
Bárbaro, nômade.
Errante, estrangeiro.
E sou.
Mas quero te dar um lar
E dá-lo a mim.
E devo ser, talvez, mais
Do que esta máscara de bêbado, ainda que,
Quando a tire
De mim,
Eu nada
Me saiba.
Mas eu estou aqui,
Tremendo dentro de mim
Mesmo, essencialmente três:
Palavra, alma e
Máscara.
E eu vim aqui pra te entregar
Meu medo, junto com a aliança
Que perdi no caminho.
Esse medo expresso nos meus
olhos baços, que te parecem
lindos, que você acha lindos
quando eu não
bebo.
Mas ontem e hoje e sempre,
Que eu me lembre, eu bebi,
E copulei e bebi e copulei e
Bebi e copulei,
Para sentir uma nesga
Do amor que, talvez,
Esteja em
Ti.
Mas ontem te traí,
Devo dizer,
Aqui.
Por isso, releve a minha
Embriaguez, pois te confesso
Em público o erro, nessa centésima
Trigésima vez, nesta hora em que expresso
Todo meu arrependimento e minha fraqueza,
De joelhos.
Eu sou o mendigo,
Você a senhora
De meu destino.
Eu sou o exilado
Em toda terra que
Piso,
O bandido,
O arlequim,
O bandoleiro,
O trágico,
O palhaço.
Eu sou o outro filho de Dioniso,
O que implode em vez de disparar
Tiro.
Eu sou aquele que sofre e faz sofrer,
Sem encontrar gozo ou alívio.
Eu sou o pária expulso do corpo e do
Riso.
Eu sou o meu desgosto o teu desgosto
Aqui expresso, de joelhos, patético,
Farsesco, fraudulento, estrangeiro
Para ti para mim para os outros,
Em meu próprio casamento.
Eu me contorço e fermento,
Copulo e bebo e copulo e te
Traio e copulo e bebo, mas não me contento,
Nem me conforto.
Eu sou um outro de fora
Que veio habitar o dentro,
E não foi aceito.
Meu ponto fraco é inteiro
E eu mesmo sou pedaço.
O que eu seguro me escapa pelos
Dedos, como a aliança de casamento
Que eu perdi, a esmo, no caminho.
Porque nem sigo reto, porque me
Inclino sempre à direita, como um
Escritor que está ficando
Cego.
Eu sou um rosto a ser descoberto
Por tuas mãos, por teu beijo, por
Teu afeto.
Eu sou um ébrio que pareço um
encosto,
um mendigo que pareço pedir
teu sacrifício e tua falta de
sono pra me esperar
chegar enquanto
nunca amanhece,
quando o sol se
esquece de
acordar.
Eu te trago a dúvida
Eu faço dívidas.
Talvez seja essa a outra
coisa que te aterrorize
além da aliança que
deixei cair. Eu faço
dívidas, e você
não quer
dividir.
Em contrapartida,
Quando eu empresto, não
Me pagam. Eu sou tido por
Desonesto, quando sou fraco
E desonesto. Os dois. É mais
complexo. Eu sou o negativo do que pareço. Mas não sou
vingativo.
Eu não atiro, eu não machuco,
Eu não lincho, eu me desmancho
E cedo e choro, à beira da sarjeta
E do abismo, e prometo aos que
Passam o que não tenho.
E chamo amigos,
Porque os quero amigos,
Os que não
Conheço.
Eu conto história de um
Passado que eu invento,
Talvez pra parecer um outro,
Completamente outro, eu que
Sou sombra, elmo e
Escudo.
Eu que sou roto, quase
Afogado em álcool.
Eu não tenho critérios,
eu não tenho os meios,
Eu não sei ler os instrumentos
Aéreos para me sentir elevado quando bebo,
Para me sentir inspirado leve alado enlevado
Com o fogo que, em mim,
Fermenta.
Eu sou balão à deriva,
sem bússola, sem para
-quedas.
Eu sou o herói pára-raios
Sob a chuva, o filho frágil
Que não se sustenta,
Entregue à borrasca.
Eu sou lilás, mas nefasta,
Coberta com crosta negra,
Calcinada.
Eu ofereço espetáculo
Gratuito, quando tropeço
Na calçada, quando peço
Um troco ou
Um trago.
Eu estraguei a vida de muitos
E a minha própria.
Eu me dei a mim mesmo como
Oferta inóspita.
Cantam contam cantam a minha
História a minha ânsia a minha perda
No coro da tragédia
Grega.
Eu sou o que vaga entre os mortos, em
Vida.
Ainda assim, eu estou aqui para dizer
Que estou aqui mesmo, para dizer que
Sim e que te aceito, mesmo tendo
Perdido nossa aliança de
Casamento
Faça-me potável, não mais ébrio e
Sujo, faça-me querido, faça de mim
Sair um homem inteiro, o homem bom
Que possa estar embutido.
Faça-me sorver teu sim como um remédio,
E salva-me de mim mesmo,
E me dá abrigo.
Dê-me a carne e o pão, dê-me a tua carne
E me tire o vinho, pois não sei ser são sorvendo
Fogo não sei adoçar o fogo alisar o fogo acariciar
O fogo amansar o fogo que me dói por dentro.
Sopra, então, em mim o teu alento.
Mistura um pouco do teu vento
E do teu óleo bento no meu beijo
Azul noturno.
Eu sou um ébrio e eu me contorço
e fermento e existo como um escolho
como um obstáculo na vida dos que eu
escolho.
Abra o olho, meu amor. Ou melhor,
Feche os olhos pro meu beijo escuro.
Nem eu mesmo sei bem o que quero.
Eu sei o que não posso. Eu sei como me
Pareço: como novilho ou lobo preso no
Emaranhado espesso de arbustos com
Espinhos negros.
Eu me pareço assim, sozinho, mesmo
Com você.
E ainda que eu queira e teime e trema
E me exprema e me ajoelhe, sinto que
Você não poderá dar jeito nesse meu
Fundo vermelho sobre negro.
Eu sou complexo em mim mesmo,
Vermelho azul e negro. Nigérrimo.
Eu sou o pária dos párias,
Um cão mordendo um pedaço de
Madeira.
Então, não se case! Acorde!
Enterre-me ali mesmo, ou
Deixe-me à beira do abismo,
E não deixe de plantar por perto
Um cepo de videira!
E que todas as montanhas sejam minhas!
E que não haja mulher que me queira!
Vou-me embora a pé, andando em curvas,
Como cheguei. E te peço, por mais que te pareça
Estranho: não me procure mais, me esqueça!
Eu estarei chorando girassóis como sempre fiz,
Na sarjeta.
Você não me quer mais,
Porque não me quer
bêbado. Eu sinto.
Vejo nos teus olhos,
tens medo do vinho
e do absinto.
Você não pode comigo.
Não creio que jogue a corda no
Fim do poço sem fim sem cair junto.
Nem que possa tocar alcançar a dor
Que mora em mim como um filho
Dorme ao
Relento.
Você não pode comigo, para viver ou
Morrer comigo, de joelhos, com o punho
Fechado sobre o peito, rezando aos monstros
Do caos primeiro.
Não podes me acompanhar
Na noite de mim mesmo.
Eu não creio!
E cuspo aqui no chão, agora, em frente ao altar,
Para expressar meu desprezo por tua compaixão!
Pode você suportar um eclipse do sol com o olho aberto?
Duvido!
Deixo-te aqui! Cala-te! Para de chorar!
Pode você aplacar os poderes do inferno,
Sem se deixar fulminar?!
Eu sou o bago pisado da uva negra,
E o peso do pé que me pisou você
Não suporta,
Nem dividir minha ânsia, meu andar
-sem saber, meu frio que não encontra
Calor, meu calor que nunca amansa.
Duvido! Quem é você?! Pote de
Lágrimas e náuseas com presunção
De Madre Teresa, ou Nossa Senhora?!
É você divina ou metade divina, ou é
Metade vermelha verme e azul noturna,
Como eu sou inteiro?!
Você não pode seguir em paz com satanás
Do seu lado. Você não é santa, não me engana.
Não se faça de ingênua à cabeceira de minha cama.
Quando eu te conheci nem virgem mais era, nem fui
Eu que te fiz mulher! Como perdoar você, me diga?!
Como me perdoar por querer me casar com você?!
Só indo embora...
Eu devia estar bêbado quando te
Encontrei na noite virulenta sem luz e sem fogueira.
E eu já quase estava a me comprometer com você,
Com tuas ambivalências, com tua prepotência,
Com tua arrogância de imaginar poder salvar
Alguém. Teu lugar é o da pergunta, e não o de
Me dar respostas, cadela imunda e preguiçosa!
Eu sou teu rei, mesmo ébrio, porque te faço
Parecer sã e boa, quando o que tu sabes
Fazer mesmo e de melhor é dormir com os
Meus amigos e com os que me desprezam!
Então, diz pra mim, como amar a ti?!
Pedes muito a mim, que mude. Eu,
refugo de mim, desde a origem.
Minhas costas doem, meu estômago
Chora e enjoa, mas quer mais um gole.
Só mais um copo ou dois. Prove agora
Que me ama, saia daqui e me acompanhe!
Beba comigo, mesmo que seja só por mim!
Duvido, manequim de Madre Teresa!
Duvido que possas comigo, sempre em
Metamorfose, como Raul Seixas, sempre
Fora de mim e mutante para me sentir mais
Vivo! Você é frágil, tola, arrogante, jamais
teria sobrevivido ao fogo que eu bebo!
Eu conheço o vinho! Eu conheço o
Sofrimento!
Você conhece a mim e o arder sem fim
De um desejo inquieto?! Duvido!
Tenho pena de ti. Pena, não, tenho nojo
E desprezo por vocês dois, e de mim mesmo.
E você também tem nojo e medo de mim,
Não me negue, vejo no teu rosto!
Está aí exposto, na frente do padre e de
Todos! Não se ausente, não seja covarde
Como eu tenho sido, Antes que seja tarde!
Confronte-me! Confronte-se comigo!
Se me ama tanto assim, corra atrás de
Mim sem se desesperar! Não aceito
Mulher sem postura! Eu sou bêbado,
Mas tenho os meus critérios! E você não
Pode comigo, nem com o que eu sinto e
vejo. Você não pode suportar os cem cavalos
negros de São Tomás de Aquino
com seus cascos cinzentos, que cavalgam
sob o céu e sobre o vento, você não pode
com esse galope de cem cavalos coriscando
raIos, nem o sol negro, nem o
olho mau de Deus, nem tudo o que conheço,
sem sentar numa cadeira deitar-se numa cama
e pedir
arrego!
Você não aquenta o galope de cem cavalos
Irados sobre a cabeça! Então reconheça e se
Despeça. Vou-me embora! Eu que sou três:
Copo, palavra alada e alma. Eu que sou três,
Também: sombra, escudo e elmo.
E se me despir,
Será longe daqui.
Marcelo Novaes
sexta-feira, 18 de setembro de 2009
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Um comentário:
Esse poema, é algo fora de tudo que já li. Começo a chorar daqui:
"Eu sou o filho mau gerado,
Que bebo e copulo bebo e copulo
Bebo e copulo e bebo, sem fim,
Para compensar a falta de amor
Do ato que a mim
Me gerou".
E vou chorando até o final. Chega a molhar o teclado. E olha que já sei quase todo de cor.
Não sei se por ter tido marido alcoolatra, não sei se por me considerar também má gerada, sei lá.
Como conheço a ambos, Marcelo e Wellington são meus dois grandes amigos, e por ter visto nascer o poema.... pronto, já estou soluçando.
Marcelo, aplaudo de pé, depois me curvo em reverência à você e ao Well que também é fã e coadjuvante do poema!
Um beijos aos dois!
Well, obrigada por postar mais uma vez esse poema. Mas coloque num quadro. Esse merece!
Beijos
Mirse
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