sábado, 26 de julho de 2008

UM POETA GENIAL

A FRANJA BRANCA DA LUZ


MARCELO NOVAES




A primeira água do pote

nasceu do ventre

da terra,

e eu logo percebi

o que

se passara.

Rezei à Nossa Senhora do

Cobre,

pedi a Ela

um certo amor seco

opaco morno,

da espécie do zelo

que toca

o pó.

Pedi-Lhe paz

para suportar

vazios,

entrevendo o frio

até que a verdadeira

escolha

surgisse.

Nada de extra

-ordinário.

Suportar o

tédio,

sem apelação

ou sub

-terfúgio.

Entreguei o ar pesado

à própria

gravidade,

rezei à gravidade,

considerei o barro como

matéria-prima do

amor.

Procurei pela palavra

ainda não ex

-pressa,

e ela dormia em meu

plexo,

como pirata

de um olho

só.

Com o outro olho

procurei

por grãos de

turmalinas-virtudes

-negras,

em meio às ilusões

de antigas

e douradas

glórias.

O ouro é o território

do enfado,

e dos

infartados.

Vi o vôo de dezessete

pássaros em torno

de um único

caniço de

junco,

enquanto ouvia as vozes

dos antepassados,

e de todos os meus

íntimos,

em volume baixo.

Compreendi a fantástica

esfera

de lava e fogo

que mora na boca

do estômago.

Sentado,

beijei minha própria face

machucada,

dentro de minha

respiração:

corpus et animus,

molde e

fôlego,

meu torrão

de terra

natal.

"Que meus hábitos não des

-figurem

o sopro,

nem

o barro".

Foi então que me vi

trançando,em-mim

-mesmo,

cesta de vime

carregando memória

de ventos

e bisavós.

Ouvi o choro dentro

das costelas

de todos

que esbravejaram

um dia.

Procurei pelo mistério

acobreado,

o mistério do chão roxo

acobreado,

e levantando o rosto

com meu olho cego

de pirata,

enfim,

divisei a franja branca

da luz-prata.

Essa foi a poesia que primeiro me encantou das que Marcelo Novaes escreveu. Lida e relida por mim, essa poesia tem a lembrança das coisas que depois do tempo passado tem a mesma formação na memória, como se você podesse estar vivendo a primeira leitura toda vez que lesse.

O que primeiro me encantou foi o título: “A franja branca da luz”, a foto que vem com o poema no blog, sugere que a imagem sugeriu o título.

Um grande poeta, um grande artista tem de ter um emblema, mesmo que ele não considere sua melhor obra, e o mais das vezes não é. Mas precisa ter uma coisa que o identifique. Chico tem “a banda”, joão gilberto: “chega de saudade”, para mim essa é a poesia emblemática de Marcelo Novaes.

Na poesia brasileira de hoje e de sempre é necessário divisar os bons e os médios. Marcelo não é um médio.

Pretendo daqui para frente postar textos de João Cabral De Melo Neto e Marcelo Novaes, entre uma e outra estultíce minha.

A devoção que tenho a Cabral de Melo Neto, e imensa, coloco aqui ele junto a Marcelo. Fiz isso com Drummond porque sei que perto de Cabral, Drummond some. Marcelo não.

Entendam como quiserem.

Não entendam como quiserem não, entendam assim: wellington acha Marcelo Novaes melhor que Carlos Drummond de Andrade.

4 comentários:

Marcelo Novaes disse...

Oi, Wellington!

Fico muito satisfeito de encontrar esse meu poema aqui. A apresentação do blog está muito boa. Figurar, de vez em quando, ao lado desses autores é privilégio.
Ouvi um trecho de um poema de Carlos Drummond feito para o Guimarães Rosa, chama-se "Um Certo João", e percebi como Drummond valorizava e entendia os Mestres.

Um grande abraço, e obrigado!


Marcelo.

Marcelo Novaes disse...

Um chamado João

Poema de Carlos Drummond de Andrade

Publicado no jornal Correio da Manhã, de 22.11.1967, e reproduzido em:
Em Memória de João Guimarães Rosa. Rio de Janeiro, José Olympio, 1968.



João era fabulista
fabuloso
fábula?
Sertão místico disparando
no exílio da linguagem comum?


“Projetava na gravatinha
a quinta face das coisas
inenarrável narrada?
Um estranho chamado João
para disfarçar, para farçar
o que não ousamos compreender? “


Tinha pastos, buritis plantados
no apartamento?
no peito?
Vegetal ele era ou passarinho
sob a robusta ossatura com pinta
de boi risonho?


Era um teatro
e todos os artistas
no mesmo papel,
ciranda multívoca?


João era tudo?
tudo escondido, florindo
como flor é flor, mesmo não semeada?
Mapa com acidentes
deslizando para fora, falando?
Guardava rios no bolso
cada qual em sua cor de água
sem misturar, sem conflitar?


E de cada gota redigia
nome, curva, fim,
e no destinado geral
seu fado era saber
para contar sem desnudar
o que não deve ser desnudado
e por isso se veste de véus novos?

Mágico sem apetrechos,
civilmente mágico, apelador
de precípites prodígios acudindo
a chamado geral?
Embaixador do reino
que há por trás dos reinos,
dos poderes, das
supostas fórmulas
de abracadabra, sésamo?
Reino cercado
não de muros, chaves, códigos,
mas o reino-reino?

Por que João sorria
se lhe perguntavam
que mistério é esse?
E propondo desenhos figurava
menos a resposta que
outra questão ao perguntante?

Tinha parte com... (sei lá
o nome) ou ele mesmo era
a parte de gente
servindo de ponte
entre o sub e o sobre
que se arcabuzeiam
de antes do princípio,
que se entrelaçam
para melhor guerra,
para maior festa?
Ficamos sem saber o que era João
e se João existiu
de se pegar.

Marcelo Novaes disse...

Bom, aqui está o poema do Carlos sobre João. O nome certo é "Um Chamado João". Bela homenagem escrita em versos. Concorda comigo?!

Um abração,

Marcelo.

WELLINGTON GUIMARÃES disse...

CONCORDO, MAS VOCÊ HÁ DE CONVIR QUE UM POEMA FEITO PARA O ROSA NÃO PODE SER JULGADO,PORQUE O ROSA NOS DESPERTA UMA SIMPATIA IMEDIATA. ATÉ PELO NOME.