A FRANJA BRANCA DA LUZ
MARCELO NOVAES
A primeira água do pote
nasceu do ventre
da terra,
e eu logo percebi
o que
se passara.
Rezei à Nossa Senhora do
Cobre,
pedi a Ela
um certo amor seco
opaco morno,
da espécie do zelo
que toca
o pó.
Pedi-Lhe paz
para suportar
vazios,
entrevendo o frio
até que a verdadeira
escolha
surgisse.
Nada de extra
-ordinário.
Suportar o
tédio,
sem apelação
ou sub
-terfúgio.
Entreguei o ar pesado
à própria
gravidade,
rezei à gravidade,
considerei o barro como
matéria-prima do
amor.
Procurei pela palavra
ainda não ex
-pressa,
e ela dormia em meu
plexo,
como pirata
de um olho
só.
Com o outro olho
procurei
por grãos de
turmalinas-virtudes
-negras,
em meio às ilusões
de antigas
e douradas
glórias.
O ouro é o território
do enfado,
e dos
infartados.
Vi o vôo de dezessete
pássaros em torno
de um único
caniço de
junco,
enquanto ouvia as vozes
dos antepassados,
e de todos os meus
íntimos,
em volume baixo.
Compreendi a fantástica
esfera
de lava e fogo
que mora na boca
do estômago.
Sentado,
beijei minha própria face
machucada,
dentro de minha
respiração:
corpus et animus,
molde e
fôlego,
meu torrão
de terra
natal.
"Que meus hábitos não des
-figurem
o sopro,
nem
o barro".
Foi então que me vi
trançando,em-mim
-mesmo,
cesta de vime
carregando memória
de ventos
e bisavós.
Ouvi o choro dentro
das costelas
de todos
que esbravejaram
um dia.
Procurei pelo mistério
acobreado,
o mistério do chão roxo
acobreado,
e levantando o rosto
com meu olho cego
de pirata,
enfim,
divisei a franja branca
da luz-prata.
Essa foi a poesia que primeiro me encantou das que Marcelo Novaes escreveu. Lida e relida por mim, essa poesia tem a lembrança das coisas que depois do tempo passado tem a mesma formação na memória, como se você podesse estar vivendo a primeira leitura toda vez que lesse.
O que primeiro me encantou foi o título: “A franja branca da luz”, a foto que vem com o poema no blog, sugere que a imagem sugeriu o título.
Um grande poeta, um grande artista tem de ter um emblema, mesmo que ele não considere sua melhor obra, e o mais das vezes não é. Mas precisa ter uma coisa que o identifique. Chico tem “a banda”, joão gilberto: “chega de saudade”, para mim essa é a poesia emblemática de Marcelo Novaes.
Na poesia brasileira de hoje e de sempre é necessário divisar os bons e os médios. Marcelo não é um médio.
Pretendo daqui para frente postar textos de João Cabral De Melo Neto e Marcelo Novaes, entre uma e outra estultíce minha.
A devoção que tenho a Cabral de Melo Neto, e imensa, coloco aqui ele junto a Marcelo. Fiz isso com Drummond porque sei que perto de Cabral, Drummond some. Marcelo não.
Entendam como quiserem.
Não entendam como quiserem não, entendam assim: wellington acha Marcelo Novaes melhor que Carlos Drummond de Andrade.
4 comentários:
Oi, Wellington!
Fico muito satisfeito de encontrar esse meu poema aqui. A apresentação do blog está muito boa. Figurar, de vez em quando, ao lado desses autores é privilégio.
Ouvi um trecho de um poema de Carlos Drummond feito para o Guimarães Rosa, chama-se "Um Certo João", e percebi como Drummond valorizava e entendia os Mestres.
Um grande abraço, e obrigado!
Marcelo.
Um chamado João
Poema de Carlos Drummond de Andrade
Publicado no jornal Correio da Manhã, de 22.11.1967, e reproduzido em:
Em Memória de João Guimarães Rosa. Rio de Janeiro, José Olympio, 1968.
João era fabulista
fabuloso
fábula?
Sertão místico disparando
no exílio da linguagem comum?
“Projetava na gravatinha
a quinta face das coisas
inenarrável narrada?
Um estranho chamado João
para disfarçar, para farçar
o que não ousamos compreender? “
Tinha pastos, buritis plantados
no apartamento?
no peito?
Vegetal ele era ou passarinho
sob a robusta ossatura com pinta
de boi risonho?
Era um teatro
e todos os artistas
no mesmo papel,
ciranda multívoca?
João era tudo?
tudo escondido, florindo
como flor é flor, mesmo não semeada?
Mapa com acidentes
deslizando para fora, falando?
Guardava rios no bolso
cada qual em sua cor de água
sem misturar, sem conflitar?
E de cada gota redigia
nome, curva, fim,
e no destinado geral
seu fado era saber
para contar sem desnudar
o que não deve ser desnudado
e por isso se veste de véus novos?
Mágico sem apetrechos,
civilmente mágico, apelador
de precípites prodígios acudindo
a chamado geral?
Embaixador do reino
que há por trás dos reinos,
dos poderes, das
supostas fórmulas
de abracadabra, sésamo?
Reino cercado
não de muros, chaves, códigos,
mas o reino-reino?
Por que João sorria
se lhe perguntavam
que mistério é esse?
E propondo desenhos figurava
menos a resposta que
outra questão ao perguntante?
Tinha parte com... (sei lá
o nome) ou ele mesmo era
a parte de gente
servindo de ponte
entre o sub e o sobre
que se arcabuzeiam
de antes do princípio,
que se entrelaçam
para melhor guerra,
para maior festa?
Ficamos sem saber o que era João
e se João existiu
de se pegar.
Bom, aqui está o poema do Carlos sobre João. O nome certo é "Um Chamado João". Bela homenagem escrita em versos. Concorda comigo?!
Um abração,
Marcelo.
CONCORDO, MAS VOCÊ HÁ DE CONVIR QUE UM POEMA FEITO PARA O ROSA NÃO PODE SER JULGADO,PORQUE O ROSA NOS DESPERTA UMA SIMPATIA IMEDIATA. ATÉ PELO NOME.
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