terça-feira, 20 de janeiro de 2009

ANCORADOURO

ANCORADOURO




MARCELO NOVAES




Sua sombra batendo seus passos
e desembarcando, sem propósito,
na praça central do
mercado.



E ele que já fora o bardo, o poeta,
o homem nu na planície vermelha,
agora mais da metade veias lombo
punhal metal
prateado.



Quase metade olhos de viuvez,
outra maior metade,
orfandade.




Bigode grisalho e barba,
cobertor de estopa, que
é também agasalho,




quase metade calor sarjeta
- faça chuva ou faça sol -,
a maior metade longe,
túmulo rosário contas
Portugal.




Velho marinheiro aposentado,
mais da metade inválido
solidão súplica com boca
fechada,




terra até o calcanhar areia
cheiro de bacalhau, meio casca
grossa, meio lascado pelo sol e
pelos pesadelos.




Poucas vezes lançando seus
gritos na planície vermelha
- quando está só -, com um
toco de cigarro aceso entre
os dedos
sujos.




Velho marinheiro magro
com seu cotovelo ossudo
fumando nos degraus da
igreja do hospital, nas
soleiras das casas, na
penumbra do outono,
sem saber o caminho
de volta
ao mar,




com dois pés no sonho,
pisando hastes de trigo
seco - ou
joio -,




quer seja ali chão de
pedra ou
cimento,




com olhos fixos num
pássaro marinho,




meio mareado meio
flutuando, meio perdido no trajeto
curvo das gaivotas e das aves todas,




lembrando do velho santo de madeira
do pau oco e do profeta de gesso
ou pedra do Aleijadinho.




Na mão, o saco de estopa, na testa
as veias em alto relevo,




uns poucos versos na memória
e a ficção que hoje é a voz dela,
a sereia.




Aquele verão não durou,
o tempo foi traiçoieiro meio
tanto meio tarde meio lento,
avançando na água e enchendo
a canoa d'água - a propósito, pela
metade -, de água verde prateada.




A âncora enferrujando ao
fundo do mar salgado,




os dedos amarelos de ferrugem
e pelo fumo picado, enferrujando,
a proa singrando o mar anacrônico
meio tarde meio cedo meio além
-do-tempo-do-mar-sem-tempo,




a proa do barco singrando a imensidão
da paz ondulante excessiva celeste e um
carrilhão de nuvens.




A boca vincada, os olhos
remelentos e insones,




os versos imorais pesados,
como os de Charles Bukowski,




o toco de cigarro na mão, a luz salgada,
o hálito triste e lascado por dentes
cariados,




a fronte quebrada e alquebrada no frio
dos batentes das portas e esquadrios
das janelas fechadas,




olhos amarelos
como os de um
leopardo,




um fiapo de voz antes do grito vermelho,
ócio e caminhadas na voz quase apagada
ao entardecer ao enegrecer ao amarelecer
do tempo,




fiapos de voz na arrebentação vespertina
das velhas ondas e na maresia presa no
olfato e na garganta,




fiapos de voz um só fiapo no tombo e na
queda seca,




fiapos de voz nas costas encurvadas nas
marés baixas no
ancoradouro.




Fiapos de voz na onda negra e na planície
vermelha,



versos rezas ao anoitecer ao entardecer e
nas manhãs frias de lamúrias veladas pela
ventania.




Saudade da paz dos grilos sob a trovoada
gigante,




do punho cerrado de Deus contra os homens
e de seu punho cerrado clamando a Deus na
planície vermelha,




agora sem poder acreditar arquejante trêmulo,
cinquenta e poucos anos de versos e genuflexão
de joelhos dobrados e se dissolvendo em ternura
& sal,



e sem poder acreditar no céu rabiscado na chuva
encharcando os ossos, sem poder acreditar na
chuva prateada e na tristeza como personagem
principal.




Cinquenta e poucos anos tão mal gastos e
sem poder acreditar nos ventos mornos
no pólen no caminho de volta pra aldeia,
sem poder acreditar no mar sem areia e
no pássaro sem
ar,




cinquenta e poucos anos sem poder
acreditar no verbo, mas mesmo assim rezando
recitando e rezando recitando e rezando versos
de marinheiro de louco de ébrio de velho-que
-vale-pouco-porque-quase-morto,
na extensão da interminável
planície,



sem poder acreditar nas tantas
cicatrizes,




na inocência e na passagem do
tempo,



nos fetos e nos rebentos que não
vingaram,




sem poder acreditar no poente,
no sonho abatido a machadadas,




sem poder acreditar nas derrotas
do comissário e do almirante, no
tempo que passou sem avisar,
de tão lento, nas pedras do
tabuleiro, na conclusão do
jogo, no fim do amor.





Sem poder crer na face coberta de
uivos,



nos musgos do mar & moluscos,
na solidão das algas & dos corais,




sem poder crer na imperturbabilidade
das pedras e na mudez da música que
se desfez, na fábula que se desfaz, sul
-cando as ondas,





com seus cabelos despenteados pelo
vento, como Heitor ou como Homero,
como um remo de madeira cortado ao
meio,





como garça que se parte num vôo ou
como pintura
chinesa,





meio mínimo demais meio aranha sem
três patas, meio espectro meio roxo meio
véu rasgado, velho macilento e marinheiro,
mas meio camponês sem achar o seu chapéu
de palha,





meio cego meio coxo meio eletrificado meio
perdido meio morto meio cambaleando
molhado & torto & meio trêmulo &
torturado em seu ferido orgulho
de soldado-do-mar-sem-lar,





examinando os danos nas pastagens secas,
os lagartos deitados nas sombras, os ratos
da planície, sem poder acreditar nos braços
flácidos,




na fome na velhice no temporal no xale de
flores & nas lágrimas de
sal,





nos bulbos ressecados das plantas de ontem,
na aspereza lisa das conchas do mar, na febre
e na voz que se esconde na nervura da folha
que se esquece ao longe, na carroça
abandonada, no cavalo que morreu
de peste e no poste que tombou,
apagando as lâmpadas & luzes,
em meio aos ciprestes.





Sem poder crer na lua minguando num céu
envernizado de
preto,



nas manchas do leopardo,
num gatinho perdido no meio
do capim alto, soluçando soluçando
& soluçando.




Cinquenta e poucos anos e sem poder
acreditar no calhamaço de notas sem
valor, nos lustres na balaustrada nos
homens ilustres, no porto no ancora
-douro, meio tolo meio falso meio fa
-ke meio freak meio foda meio intei
-ro desgraçado e, por isso mesmo,
pela metade,




mas por isso mesmo com vontade

de morrer mais que tudo no branco
harmonioso do nada do esquecimento,
no silêncio ermo de um precipício
de água sem princípio, morrer no
Início da
Criação,





morrer de bruços num mar de brumas
sob um céu sem pátria num poente cor
de rosa e sem princípio, morrer pelo resto
de sua vida sem dor sem alarde sem saudade
sem ninguém a lhe zumbir no ouvido canções
de répteis,



morrer sem ninguém na solidão da planície,

trocando a pena de viver pela pena de um
corvo, num verso de Edgar Allan Poe.

2 comentários:

Moacy Cirne disse...

Grato pela mensagem deixada no Balaio, meu caro. De resto, Marcelo Novaes é um ótimo poeta e Luiz Gonzaga é uma das minhas referências nordestinas mais fortes. Abraços.

Unknown disse...

Como é bom ler Marcelo Novaes e deixar fluir as emoções e poder chorar sem razões por um marinheiro.
Bela escolha, Wellington!
Este é um dos meus preferidos entre tantos.

Beijos, amigo querido


Mirse