quarta-feira, 15 de outubro de 2008




HABITAR O TEMPO


JOÃO CABRAL DE MELO NETO




Para não matar seu tempo,imaginou:

vivê-lo enquanto ele ocorre, ao vivo;

no instante finíssimo em que ocorre,

em ponta de agulha e porém acessível;

viver seu tempo: para o que ir viver

num deserto literal ou de alpendres;

em ermos, que não distraiam de viver

a agulha de um só instante, plenamente.

Plenamente: vivendo-o de dentro dele;

habitá-lo, na agulha de cada instante,

em cada agulha instante: e habitar nele

tudo o que habitar cede ao habitante.




E de volta de ir habitar seu tempo:

ele corre vazio, o tal tempo ao vivo;

e como além de vazio, transparente,

o instante a habitar passa invisível.

Portanto: para não matá-lo, matá-lo;

matar o tempo, enchendo-o de coisas;

em vez do deserto, ir viver nas ruas

onde o enchem e o matam as pessoas;

pois como o tempo ocorre transparente

e só ganha corpo e cor com seu miolo

(o que não passou do que lhe passou),

para habitá-lo: só no passado, morto.



João Cabral de Melo Neto,


A educação pela pedra e depois

Um comentário:

Anônimo disse...

Sem comentários. ajá aprendi que obra de arte, aprecia-se. Não se comenta.
Belíssimo!!!!

Parabéns, Wellington.

Abraços
Mirze